“Achava-se tudo demudado nas terras do Morro, vinte dias depois da festa
a que assistimos em casa da tia Deodata.
O sol dardejava raios cadentes e a seca aumentava os horrores dos seus
assombrosos estragos.
As campinas estavam tostadas como se acaso uma torrente de fogo as
houvesse sapecado; as folhas enroscavam-se, engelhavam-se como se fossem
frisadas por um ferro encandescente; as avezinhas abandonavam seus ninhos e em
bandos partiam pipilando; as águas decresciam e o Gao, mugindo lugubremente nos
campos, tombava exangue. A miséria invadia tudo de um modo sinistro.” (Ataliba, O Vaqueiro, 2012, p.67)
Ataliba, o vaqueiro, narrativa publicada por Francisco Gil Castelo
Branco, é composta por 10 capítulos. O fragmento apresentado foi transcrito do
início do capítulo V. Trata-se do momento na obra em que a representação
idílica do sertão cede espaço para as agruras provenientes da seca, que se
aproxima de maneira arrebatadora e irá transfigurar não apenas a paisagem amena
dos 4 primeiros capítulos numa ambiente hostil e degradante, mas também a vida
dos personagens, sobretudo seus protagonistas.
Publicado em 1878, a obra de Francisco Gil filia-se ao Romantismo
brasileiro já em franco direcionamento para uma postura menos idealizada, ainda
que não desvencilhada das convenções da escola literária em questão. Em 1875,
veio a lume A Escrava Isaura, de
Bernardo Guimarães, e, em Portugal, que já conhecera o Realismo através da
Questão Coimbrã há cerca de dez anos, Eça de Queirós levou a público seu
polêmico romance O Crime do Padre Amaro.
Era evidente que a desestruturação do Romantismo se encaminhava em terras
brasileiras; e, após O Sertanejo (1878),
de José de Alencar, poucos romances, tais como O Cabeleira, de Franklin Távora (que segue o filão regionalista), Helena, de Machado de Assis, (ambos de
1876) e Iaiá Garcia, também de
Machado de Assis (1878) são tidos com um mínimo de consenso como obras
literárias que apresentam significativa relevância, sendo que todas se revelam
como obras híbridas, entre a idealização marcante da estética anterior e uma
preocupação crítica e social que só iria se resolver com o advento do Realismo
e do Naturalismo. O fato de Senhora e
O Sertanejo constituírem as duas
últimas obras que José de Alencar tenha publicado em vida torna o colapso
romântico ainda mais marcante, pois corresponde ao desfecho da carreira de um
dos autores fundamentais para a estética em questão. Entretanto, nesse período
crepuscular para o Romantismo, diversas obras, muitas vezes ignoradas pela
crítica em geral, revelam uma caracterização bastante problematizadora da
representação da realidade de determinados rincões brasileiros que requerem um
olhar mais agudo. Dentre estas, observamos o caso pioneiro do retrato da seca
em Ataliba, o Vaqueiro.
Se, após a independência política do Brasil, o Romantismo utilizou a
figura do indígena como elemento de distinção entre Brasil e Portugal, o
regionalismo de José de Alencar e demais autores regionalistas pode ser visto
como um desdobramento desse elemento de distinção, uma vez que seus personagens
cumprem funções simbólicas semelhantes ao papel destinado pelo autor a Peri,
Ubirajara e Iracema, protagonistas de seus romances indianistas, calcados em
lendas e mitos, quase sempre de origem do país, e, em seus heróis
regionalistas, encontramos a sedimentação de um tipo distinto dos citadinos
europeus que constituíam-se como a visão mais recorrente da vida europeia,
transplantada para algumas cidades brasileiras, notadamente o Rio de Janeiro
(palco da maioria dos romances urbanos) em franca oposição a um modo de vida
rude e fortemente vinculado ao solo em que vive, assim como impregnado pelas
lendas que os vastos campos pouco habitados costumam engendrar. Parecia ser,
acima de tudo, uma busca por alguma essência do ser brasileiro escondida nos
sertões e, embora sua linguagem não tenha sido essencialmente documental, é
preciso lembrar, conforme observa Paul Ricouer (Tempo de Narrativa, tomo II, 1995, p. 10), que a narrativa
histórica e a narrativa de ficção se utilizam de operações miméticas
equivalentes, por isso não as distingue em relação à atividade estruturante
utilizada pelo narrador, mas pelo anseio de rememorar a verdade pretendida pela narrativa histórica, enquanto a narrativa
literária volta-se para a criação. Artisticamente, Francisco Gil manteve-se
preso aos ditames e convenções do estilo de época, mas é bastante louvável o
esforço em trazer um desafortunado retirante para o campo da criação estética.
[publicado no jornal Diário do Povo, coluna Toda Palavra, Teresina, 30 de abril de 2013]
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