1º Motivo da Rosa
(Cecília Meireles)
Vejo-te em seda e nácar,
e tão de orvalho trêmula,
que penso ver, efêmera,
toda a Beleza em lágrimas
por ser bela e ser frágil.
Meus olhos te ofereço:
espelho para a face
que terás, no meu verso,
quando, depois que passes,
jamais ninguém te esqueça.
Então, da seda e nácar,
toda de orvalho trêmula,
serás eterna. E efêmero
o rosto meu, nas lágrimas
do teu orvalho... E frágil.
Logo no primeiro verso do poema 1º Motivo da Rosa, constante no volume Mar Absoluto, Cecília Meireles explora assonância em “e” (“Vejo-te em seda e nácar”), o que remete à sonoridade do verbo ver. Entretanto, a utilização da palavra “nácar”, e sua sonoridade bastante aberta, quebra essa assonância, mas intensifica a dimensão sonora do verso, implicando uma correlação com a propriedade comum entre a seda e o nácar, o brilho. Observa-se que tanto a assonância em “e” e seu corte em “a” é a mesma estrutura que se pode observar numa palavra fundamental para o poema: “Beleza”. Mas retomando ainda os dois termos do primeiro verso, a seda e o nácar, a oposição que poderia ser obtida entre a textura macia da seda e a estrutura calcária da madrepérola, isto é, o nácar, é preterida em favor daquilo que têm em comum, o brilho acetinado que envolve as vestes mais requintadas, por exemplo, e o nácar que prepara a pérola, daí o termo “madre+pérola”, a “mãe da pérola”, por extensão, a “mãe da beleza”. Note-se que a madrepérola também é usada na confecção de botões de alto requinte.
A correlação entre “tão” e “trêmula”, sonoridade projetada do início para o final do verso, mantém entre si a palavra “orvalho”, elemento líquido que se apresenta tremulamente em meio à seda e nácar do verso anterior, como se mesmo tão finamente envolvida não lhe fosse possível conter as lágrimas, simbólica consciência de sua efemeridade, entendendo a rosa como uma metáfora da “Beleza”, que se apresenta grafada no poema justamente em letra maiúscula, o que reforça sua idealização. Então, tem-se em um plano imediato a seda como referência às pétalas da rosa, sua textura, sua coloração; o nácar como reforço dessa coloração, por seu tom rosado ou carmim (e esta é uma outra significação bastante recorrente para o termo “nácar”), bem como a disposição das pétalas pode ser poeticamente vista como as reentrâncias circulares de uma concha, na qual sua última camada é justamente a madrepérola; e, em meio à beleza dessa flor, deposita-se o orvalho. Em um plano metafórico, a rosa pode ser entendida como uma personificação, tradicionalmente feminina (embora não de caráter exclusivo), da beleza. Entende-se que estaríamos diante de uma beleza frágil, sobretudo por ser efêmera, e assim é vista (colhida), nas lágrimas que lhe assinalam a fragilidade. Uma outra correlação pode ser estabelecida por meio da expressividade a partir dos olhos entre o ser visto, a rosa em lágrimas/orvalho, e o eu lírico observador, como se colhesse essa rosa com os olhos, para que se preservasse na memória sua beleza. Que o orvalho possa ser entendido como resultado da chegada da noite, ou pela consciência da noite iminente, intensifica sua correspondência com o envelhecimento que apagará a efêmera beleza juvenil, quando o orvalho tornar-se-á lágrima.
Oferecer os olhos como espelho, e que tal visão esteja perenizada em versos, este monumento mais perene que o bronze, conforme se cantou na antiguidade clássica através do poeta Horácio, elege a memória como depositório/repositório da beleza (não seria essa também uma das funções de um poema, senão da própria arte?). Mas percebe-se que também efêmero é o rosto do eu lírico, posto que igualmente sujeito à tirania do tempo, mas efêmero em relação à percepção que recebe da rosa, do ser contemplado, como se as lágrimas/orvalho não permitissem à rosa a beleza de ser contemplada, de alcançar a perenidade daquele olhar que a converte em poema. O rosto do eu lírico, aquele que a colhe, nada mais seria que um rosto passageiro, efêmero e igualmente frágil.
Os versos hexassilábicos, um meio termo entre as medidas mais tradicionais da poética calcada em redondilhas, poderia ser compreendido como o próprio tempo da rosa, além da primeira idade (uma possível redondilha menor) e ainda, pelo menos por enquanto, da derradeira idade (uma possível redondilha maior). A acentuação proparoxítona dos três versos centrais da primeira e da última estrofe, justapostos entre versos limitados por paroxítonas, imprime, ainda que simbolicamente, esse confinamento do ser em meio a tudo que lhe é desestruturante: entre o tremor e as lágrimas, a efemeridade. A condição humana se repete através da repetição das palavras que encerram os versos quase que duplicados: nácar, trêmula, efêmero, lágrimas, frágil. Eis que nem o nácar, nem a seda, escondem essa questão fundamental: a efemeridade que torna a beleza trêmula e frágil, extremamente frágil, como uma rosa que inevitavelmente será despetalada pelo vento.
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