Os óculos de Lennon, o olhar de Paul
[por Adriano Lobão Aragão]
Ao que parece, John Lennon considerava os Beatles uma extensão de seu círculo pessoal de relações. Partindo dessa premissa, podemos supor ser este o princípio e o fim da maior banda de rock de todos os tempos. Se em torno de si Lennon reuniu brilhantes talentos como Paul McCartney e George Harrison, também era capaz de impor a presença de seu amigo Stuart Sutcliffe na banda, embora o rapaz não tivesse a menor inclinação musical. Ainda assim, os Beatles foram adiante e arrumaram as malas rumo a Hamburgo, na Alemanha, e, principalmente, rumo ao seu primeiro amadurecimento artístico-musical. Após a saída do pseudo-baixista Stuart e do baterista Pete Best, e o ingresso do irreverente Ringo Starr, o fabuloso quarteto de Liverpool experimentou a explosão de um sucesso internacional jamais imaginado nem experimentado por outro artista. 1963 foi, definitivamente, o ano da Beatlemania. E cinco anos depois, o círculo pessoal de John Lennon exigia a presença constante de Yoko Ono na mesma medida em que se desinteressava visivelmente pela manutenção da parceria criativa com Paul McCartney e, por extensão, com o que sua banda representava a partir de 1968. É claro que a gradativa e inevitável separação dos Beatles não é uma consequência direta da presença de Yoko, mas da postura de John, do desgaste nas relações inter-pessoais e musicais entre todos, e das equivocadas decisões empresarias que se sucederam depois da morte do empresário Brian Epstein. Mas o impacto que deixaram na música popular e na indústria do entretenimento foi irreversível. E regularmente chegam às livrarias, novas obras que se propõem a mergulhar nesse emaranhado de genialidade, excentricidade, ousadia e o que mais aparecesse. Dessa vez, é Jonathan Gould, autor de Can't buy me love: os Beatles, a Grã-Bretanha e os Estados Unidos [tradução: Candombá. São Paulo, Larousse do Brasil, 2009], quem busca estabelecer um interessante painel das referências culturais que permearam a carreira dos Beatles, desde suas origens, em Liverpool, até sua tempestuosa dissolução.
Um dos méritos da obra está em compor um retrato individual de cada beatle sem perder o foco de como a união de suas forças criativas deram origem a tamanho fenômeno de público e de realização artística no universo da música pop. Ouvir cada uma das faixas gravadas pelo grupo lendo os pertinentes comentários de Gould amplia a compreensão de detalhes que quase sempre passam despercebidos, ou que não se costuma dar a devida importância. Talvez por isso, destaco a primorosa dissecação do White Album (The Beatles, 1968) na qual a análise faixa a faixa do mais caótico e disperso (e nem por isso menos fascinante) disco dos Beatles estabelece o potencial quase que exato do quanto eles conseguiriam chegar se ainda fosse possível se manter como força criativa conjunta, bem como suas particulares fragilidades, cada vez mais latentes, puxando-os para a conscientização de que há algum tempo já trilhavam caminhos distintos. Os paralelismos apresentados ao longo da obra enriquecem bastante a leitura. É curioso acompanhar o mergulho de George Harrison na cultura indiana, não apenas na música, e o impacto disso tanto nos Beatles (das notórias faixas Love You To, With You Without You e The Inner Light à desastrosa experiência com o guru Marrarishi), quanto na proliferação da sonoridade indiana na música ocidental e a utilização da cítara indiana por diversos grupos ingleses da época. Vale lembrar que Harrison tornou-se, sobretudo, um brilhante compositor de clássicos pop incontestáveis como Here Comes the Sun, Taxman, Whille my Guitar Gently Wheeps e a magistral Something. Mas os Beatles são o resultado primordial da colaboração entre John Lennon e Paul McCartney, e a relação estabelecida entre os dois define cada uma das fases da história do grupo. Compreender essa relação implica em compreender um importante capítulo da história cultural do século XX, e Jonathan Gould realizou um interessante e coeso painel a partir desse caleidoscópio de referências que definiram os anos 60, o comportamento juvenil, a cultura de massa, o mercado fonográfico e a música ocidental a partir de então. Um livro para ler e ouvir.
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