Não fosse pelo nome que aparece nos créditos da película, nem desconfiaríamos que O Regresso (“The Revenant”, 2016) é uma obra dirigida pelo mexicano Alejandro Gonzáles Iñárritu. Vencedor do “Oscar” (2015) com Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância) e autor de importantes filmes artísticos comoAmores brutos (2000), 21 gramas (2003) e Babel (2006), o cineasta parece ter mudado completamente a sua maneira de pensar a arte cinematográfica. Parece, de fato, ter renunciado ao seu estilo (referimo-nos àquele da trilogia roteirizada por Guilhermo Arriaga), cheio de invenção e de imaginação criadora, para se encaixar no esquema das grandes produções “épicas” hollywoodianas.
De qualquer forma, não podemos dizer que Iñárritu é um diretor principiante. Nem de longe. O Regresso impressiona pela sua beleza plástica, pelo cuidado de sua fotografia (Emmanuel Lubezki, o premiado cinematographer, explora com mestria as luzes naturais do ambiente), pela atuação de alguns atores (Tom Hardy melhor que Leonardo DiCaprio, isso pelo seu tom mais espontâneo e seu gestual mais depurado), pela paisagem sonora dos sugestivos teclados de Ryuichi Sakamoto. O problema é que tudo para nesse primeiro impacto que recebemos. Aliás, o filme é todo impacto! Qualquer esforço interpretativo que procure um caminho mais aprofundado e reflexivo, vai esbarrar no puro tecnicismo e na "pirotecnia" visual da obra.
As cenas iniciais, em que vemos um combate entre os índios norte-americanos e os homens brancos caçadores de pele, já percebemos que se trata de um filme violento, dramático e grandiloquente. O discurso fílmico está inebriado de toda essa estética que, em raros momentos, silencia. No geral, há um verdadeiro dilúvio de imagens e de sons que, de tão intenso, vai, gradativamente, perdendo a força quando chega ao clímax narrativo: a tão esperada vingança de Hugh Glass.
O filme, que é baseado no romance homônimo do escritor Michael Punke, possui uma narrativa bastante solar: um caçador de peles, Glass (Leonardo DiCaprio), após ser atacado ferozmente por um urso, é abandonado por parte de seus companheiros. Para piorar ainda mais a situação, o seu filho é assassinado, em sua presença, pelo ganancioso John Fitzgerald (Tom Hardy), um dos homens de seu grupo. Glass sobrevive aos ferimentos graves, por meio de sua bravura e da ajuda de um índio que ele encontrara alimentando-se de carne crua na selva tenebrosa. Inicia-se, então, uma árdua jornada em busca de vingança contra Fitzgerald. Nessa peregrinação, Glass passa por todas as provas de sobrevivências possíveis para um ser humano, tais como: comer carne crua, dormir em meio a nevascas, cair de altíssimos penhascos e sofrer constantes ataques de índios.
Não há como negar que o filme possui firmeza em sua direção e em sua narrativa, apesar de sentirmos que o ritmo da montagem se torna um tanto quanto arrastado – se pensarmos na fluência rítmica sugerida pela obra desde as primeiras tomadas – nos momentos em que Glass, desamparado na floresta, tenta sobreviver. Além do que, há cenas, como a do ataque do urso, que são plasticamente muito bonitas e impactantes, não só pelo labor da montagem, como também pela sua engenhosa construção sonora. O autor também acerta no uso dos travelling, dos planos-sequencia, dos mergulhos de câmera por entre as árvores da selva. Às vezes, a câmera nos dá a sensação de que estamos, de fato, ali no meio daquela batalha sangrenta. A música do trilhista japonês Sakamoto, por sua vez, é inventiva e nunca suplanta a imagem. Ela se desvencilha dos lugares-comuns presentes em boa parte dos filmes americanos em que há conflito entre brancos e indígenas. Isto porque propõe a construção de uma paisagem sonora diferente da que ouvimos nos faroestes tradicionais e nos filmes de aventura. O músico explora a sonoridade dos seus teclados e de instrumentos de percussão, ao invés das conhecidas flautas de pã (para representar os “inimigos” indígenas) e do discurso musical dramático das grandes orquestras sinfônicas. A linguagem musical do compositor japonês possui uma textura menos densa e tende para uma estética mais eletrônica.
Porém, há problemas visíveis na película: o roteiro está povoado de clichês, de falas repetitivas e prontas, em sua maioria reforçando a ideia de coragem e luta; a interpretação de Leonardo DiCaprio (embora tenha sido aclamada quase que unanimemente pela crítica) é pesada e excessivamente dramática; a montagem está repleta de flashbacks piegas, explicativos e, quiçá, desnecessários; a opção por um realismo cru e violento termina por não abrir espaço para gratuidades poéticas, tampouco para a imaginação do interlocutor – este condenado a passar horas e horas, juntamente com Glass, vivendo um calvário interminável.
É notório, para os que acompanham a trajetória do cineasta mexicano (uma trajetória, diga-se, de grande êxito), o fato de ele pesar bastante a mão ao “pintar suas telas expressionistas” – problema este muito evidente em Biutiful (2010) e, agora, nesse seu derradeiro trabalho. O Regresso é uma obra profundamente amarrada ao roteiro, a uma explicação causal. Não possui tensão estilística (no sentido de não haver contraponto na articulação dos elementos que compõe o discurso cinematográfico). É um trabalho que não instiga nossa percepção, porque já traz tudo pronto, e em demasia.
O escritor argentino Jorge Luis Borges dizia, em Esse ofício do verso, que “qualquer coisa sugerida é bem mais eficaz do que qualquer coisa apregoada”. Se o enunciado de Borges valer para as outras artes e não só para poesia, poderíamos dizer que no cinema, a sugestão de um evento, muitas vezes, é mais forte (e melhor) visualmente do que ele próprio. É o que faz, por exemplo, Hitchcock na clássica sequencia do esfaqueamento de Marion Crane, em Psicose (1960). A montagem dos planos, os cortes visuais e as arcadas agressivas das cordas da trilha musical de Bernard Hermann são suficientes para nos transmitir pavor e brutalidade, embora não vejamos realmente a faca penetrar no corpo da personagem. O hiper-realismo de O Regresso anda em um caminho contrário: a violência é tão intensa e visível que, aos poucos, deixamos de percebê-la.
Alejandro Iñárritu nos mostra que, decisivamente, não quis dar continuidade ao seu projeto estilístico, de certa maneira ousado, que se traçou desde Amores Brutos (por sinal, vencedor do Prêmio da Crítica no “Festival de Cannes”). Mas deve haver ainda muitos admiradores de sua obra fílmica que guardam na memória a força sonoro-visual e o radicalismo estético de Amores perros; o silêncio, o lirismo e a espontaneidade poética de muitas sequencias de Babel; a rica e expressiva montagem de 21 gramas – que não visa simplesmente explicar as tramas narrativas, mas provocar uma tensão poética entre os elementos do discurso cinematográfico. A estes interlocutores, o universo estético de O Regresso certamente não interessará muito. A despeito de sua grandiosa produção, de seu empenho e preciosismo técnico, The Revenant não é mais que um filme de vingança, subordinado à desgastada gramática hollywoodiana.
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