O ITINERÁRIO DE FÁBULAS INCONCLUSAS: “Os intrépidos andarilhos e outras margens”, de Adriano Lobão Aragão
[por Alfredo Monte]
I
Se eu começar este comentário citando o seguinte trecho de Os intrépidos andarilhos e outras margens [1], “… seria então possível desvendar sua origem, o ponto do qual deságua toda a narrativa, que não é mais que o interminável poema de uma mesma fabulação? Recompor o grande, imenso poema que registra o itinerário de tudo, ou pelo menos o breve fragmento que preserva os intrépidos andarilhos, motivo de sua jornada por campos tão longe de casa?”, o meu leitor mais experiente e safo poderá abanar a cabeça e dizer com seus botões, ai meu Deus!, mais outra narrativa de metalinguagem, de fabulação narrativa voltada para a própria práxis da fabulação narrativa (e suas conexões intertextuais) como tema, ai, não aguento mais!
E se eu acrescentasse outra citação, “…com os mais diversos exemplos de histórias e temas, como um entrelaçar de dias e noites que não revelava seu fim. Mas agora tinha diante de si o enredar de fios que talvez tecesse o paradeiro do objeto de sua busca (…) à espera de quem chegasse para ouvir de-que-se-trata em cada livreto, e seguia um a um desvendando se estaria ali enredada a história que procurava, se entre todos aqueles breves e inúmeros volumes encontraria os andarilhos…”, talvez venha à mesma cabeça abanada desse leitor aquele trecho paradigmático do conto de abertura (“Os desastres de Sofia”) de uma coletânea que em 2014 chega, vejam só, aos 50 anos (A legião estrangeira): “Meu enleio vem de que um tapete é feito de tantos fios que não posso me resignar a seguir um fio só; meu enredamento vem de que uma história é feita de muitas histórias…”; Clarice Lispector, há meio-século, parecia já esgotar o assunto.
Mas não esgotou. E o lindo romance de Adriano Lobão Aragão está aí para desafiar os arautos e augúrios do esgotamento. Sim, ele trilha os caminhos da metalinguagem e da intertextualidade [2], e as peripécias do seu herói (o caminhante) deságuam no mundo de histórias contadas em verso e prosa no mundo de cantadores e cordelistas; ao fim e ao cabo da sua perambulação temos um livroque tanto era sua bagagem inicial quanto foi objeto de busca, e dentro do qual ele, seu leitor (que se formou, arduamente, como leitor, vindo do analfabetismo total), está contido como personagem, naquela coisa circular da cobra-mordendo-o-próprio-rabo. E não afirmarei que, nesse ponto, encontramos exatamente o encanto peculiar de Os intrépidos andarilhos e outras margens (infelizmente, esse título não foi dos mais felizes [3]), ainda que possa afirmar que o autor piauiense seja um dos que se saíram melhor, na ficção contemporânea, ao enveredar por essas espinhosas e traiçoeiras sendas.
Antes de tentar, todavia, definir tal “peculiar encanto” e esclarecer por que achei tão lindo o texto, seria bom fazer um percurso (sumário) pelos mil e um percursos da narrativa, a qual, seguindo a mais pura matriz homérica, mostra um protagonista que erra pelo mundo.
II
O território delineado em Os intrépidos andarilhos e outras margens é um sertão simbólico (eu quase que diria conceitual, se esse termo não fosse tão escorregadio; então usemos: poético), mas que se apresenta muito verossímil. Até os detalhes mais “fantásticos” (outro termo escorregadio) são apresentados de uma forma que me lembra García Márquez ou Juan Rulfo: há um deslocamento das leis físicas, sem que tal “liberdade poética”, por assim dizer, afete o substancial prosaísmo do real.
Instigado pela passagem dos “andarilhos intrépidos”, “caravana mambembe que perambulava ininterruptamente, mas não se sabe desde quando”, o rapaz de 20 anos deixa sua isolada terra natal. São percursos dolorosos, marcados pela quase-morte e uma ressurreição (“à beira da morte, que à beira da morte sempre esteve”).
A primeira passagem de relevo é por uma região arcaica e erma, esquecida do mundo (como a dele próprio) e orientada por uma férrea tradição pré-cristã, nem por isso deixando de contar com seus próprios totens e tabus. Uma história exemplar demonstra isso de forma inequívoca: o forasteiro que fora bem recebido pelos nativos, comera e bebera, contara maravilhas e lorotas de lugares distantes, e que por roubar uma cabra à sua partida, era morto e desmembrado por todos: “…todos queriam fazer valer a lei dos antigos, que era essa ainda a sua lei e o que poderiam nomear justiça (…) Onde tantas mãos se erguem bradando a necessária justiça, que nenhum nomearia vendeta, e a todos abarca o ofício de testemunha, acusador, juiz e carrasco, e que o culpado seja executado junto a seus defensores, se estes houvessem, claro, estes mesmos que não há…”
Nesse povoado há uma moça que vaga à noite (sonâmbula) até que um dia é violentada pelo filho do magarefe local. O avô mata o abusador (seguindo a Lei), mas a partir daí ela se sente vigiada pelo pai dele. Já não mais vaga inconsciente pela noite, e sim bem desperta. E em locais a que ninguém vai, quase interditos, ela descobre o caminhante, o rapaz que saíra de casa por conta dos “intrépidos andarilhos”, e que praticamente morreu de exaustão e escassez (uma de suas muitas mortes na narrativa). Como num conto-de-fadas, é o beijo da moça que o faz reviver, que o traz de volta ao seu corpo, num momento aliás de grande voltagem poética:
“E ela o beijou. Ela o beijou como as primeiras gotas de chuva chegam a tocar as pétalas das flores de seu perfumado campo (…) E ela o beijou como o odor da terra úmida se mistura ao odor do mato após a chuva e ofusca o perfume das flores (…) E ela o beijou como diversas vezes juntou várias flores e pétala a pétala as desmanchava em seu corpo e fingia a si mesma estar adormecida, esperando que acreditasse em sua própria ilusão (…) E ela o beijou profundamente, e entregue ao fascínio daquele instante, o caminhante não pôde mais continuar distante de seu corpo, entregue aos enleios de uma moça que lhe devolvia sua própria vida.”
A meu ver, no entrelaçamento da trajetória do caminhante e da sua salvadora é que está o ponto alto dos 61 capítulos do romance. Apesar dos ricos veios explorados mais adiante, nada se iguala em beleza, concentração e apreensão de um mundo rústico, parado, atávico, e no entanto fremente, no qual por mais que se evoque uma tradição (violenta, por sinal) e interditos, todos os gestos parecem recém-inaugurados. Adriano Lobão Aragão parecia particularmente inspirado ao escrevê-los.
Tanto que quando o caminhante dali se afasta sentimos pelo resto do romance saudade da moça que lia os seres e as paisagens no céu, como se este fosse um espelho do mundo (haverá outra mulher, porém sem a sua força). E que se encaixa na macro-narrativa ao ser ao mesmo tempo uma individualidade e uma estória em estado virtual, nesse universo que exige exemplaridades (no sentido de histórias exemplares, que alertam e reprimem): Transformava-se assim em mais um enredo para a história de uma jovem que caminhava dormindo pelas trevas, pronunciando palavras terríveis, enquanto era seguida por um avô ensandecido, como um personagem acrescido a uma fábula inconclusa”; ou ainda: “… até ser esquecida por todos e transformar-se de vez em apenas mais uma das histórias que mantêm firmes as tradições morais de seu povo.”
O próximo estágio civilizatório já é cristão, embora um mundo cristão agônico, pejado de superstição e violência, e onde o caminhante encontrará duas novas figuras iniciáticas: o padre local, que está ali como uma espécie de esteio contra a barbárie, e que se apresenta muito menos fanático do que os seus fiéis [4], e um membro desgarrado da trupe dos “intrépidos andarilhos”, o ilusionista, que abdicou do destino mambembe por conta de um amor.
Ao contrário do mundo iletrado e telúrico da moça que o beijara (e o salvara), aqui temos o mundo regido, teoricamente, pela Palavra, e palavra escrita, embora poucos tenham o aprendizado da leitura. Nota-se, porém, correndo sob a tensão dessa Palavra, um mesmo rio de brutalidade latente ou explícita (daí a terrível solidão do padre e também a ambiguidade do talento lúdico do ilusionista, que sempre pode ser tomado como demonismo, como um avatar da “mão esquerda”, a sinistra, a malsinada) [5], baseada no famigerado costume.
Como figura típica de história iniciática, o padre diz ao caminhante (quando supõe que ele já está de partida): “A pergunta, a verdadeira pergunta, seria: o que sabes sobre si mesmo? Procuras respostas sobre essa tua jornada, caminhas por estas ruas para descobrir quem é aquele homem, mas nunca paraste para perguntar nada a si mesmo. O que esperas saber dos outros?” E é ele quem dá as “pistas” para o prosseguimento da jornada: um caminho que segue o leito seco de um rio (tendo em mente que se palmilha o dorso de uma baleia, como em certos mitos e estórias romanescas havia o dorso do dragão), e do qual ele não deve se afastar para poder encontrar a fugidia trupe intrépida.
Antes de passar para a próxima etapa, não me furto a citar um dos trechos mais bonitos do romance:“Guiara o caminhante até aqui apenas os seus instintos, sem nenhuma outra indicação. Não poderia ter receio algum em continuar, até que seja inevitável que encontre o seu destino.Sabendo que o destino de todo vivente é sempre a morte? Justamente por isso, não haveria motivo algum para temer seguir adiante.” [6]
Há um interregno que evoca justamente as jornadas iniciáticas: o leito por onde se caminha, “vereda de águas ausentes”, o sono de exaustão, as cascavéis, os sete dias de “esmorecimento”, sendo tratado por um casal misterioso, que fornece a próxima “pista” (o que os cantadores cantam, como repositório de sabedoria) [7].
Após o território do arcaico e do território da sanção cristã, o caminhante se embrenha por uma espécie de mundo-feira, labiríntico mundo onde a cultura popular e mundana (“…detinha-se agora no mergulho dos intrincados caminhos da memória dispersa de um povo…”) é destilada nos livrinhos de cordel, nas histórias mirabolantes que se imbricam com as lorotas dos vendedores de mazelas e de remédios, das malas onde pode sair uma cobra (da qual foram retirados elixires) [8].
Ao se tornar ajudante e acólito de um vendedor desses folhetos de histórias, ao tentar penetrar no seu âmago (e, por isso, aprender a ler), e assim conseguir a pista final para configurar sua jornada em demanda dos “intrépidos andarilhos” e seu paradeiro, o caminhante (e a narrativa) penetra num estágio que poderíamos chamar de “borgiano”. Malgrado haja ainda muitas peripécias (o caminhante servirá como tropeiro por muitas estradas, por exemplo), a respeito das quais não convém entrar em maiores detalhes, tudo vai se armando para equacionar esse leitor em formação, o Livro (além dos livros) e espelhá-los, sendo ele o que o livro que está lendo contém.
Nesse sentido, um dos momentos mais importantes (e verdadeiramente borgianos) é quando se evoca a vida do patrão do caminhante, e descobrimos que ela pode ser uma das vidas virtuais do jovem caminhante (“E se agora reaparecia restituído à juventude, outra vida era preciso viver, e novamente jogar-se ao interminável caminho, o mesmo”). O outro é o mesmo (e, assim, elementos anteriores da narrativa vão sendo recolhidos e transmudados, como a história do justiçamento do forasteiro, que toma outro vulto na boca do tropeiro-contador).
E aqui eu mesmo posso fazer a cobra morder o rabo, remontando ao começo deste meu comentário:“… seria então possível desvendar sua origem, o ponto do qual deságua toda a narrativa, que não é mais que o interminável poema de uma mesma fabulação? Recompor o grande, imenso poema que registra o itinerário de tudo, ou pelo menos o breve fragmento que preserva os intrépidos andarilhos, motivo de sua jornada por campos tão longe de casa?”.
III
Espero que aquele que me seguiu até este ponto tenha se dado conta (não fora por mais nada, pela insistência nas citações) do trabalho de linguagem que faz o deleite do leitor de Os intrépidos andarilhos e outras margens. Esse sertão que parece saído fresquinho do novo testamento (quando Javé ainda era um deus primitivo, pouco tomístico), manhã recém-inaugurada do mundo, e seus contrapontos de feira e ruído, de palimpsestos de textos e referências (rios heracletianos, vendedores de folhetins e tropeiros borgianos), só são críveis e só fascinam porque há um senhor poeta mapeando os percursos.
Ah, o perigo: fala-se em poeta, e imaginamos uma “prosa poética”, a narrativa apenas pretexto para um lirismo mal contido. Nada disso! Poeta, e dos bons [9], Adriano Lobão Aragão também é um ficcionista, só que daqueles que plasmam uma linguagem peculiar para a sua ficção (que, no entanto, tem um impulso épico, mesmo que com suas “fábulas inconclusas”).
Li em algum lugar que ele levou cinco anos para estruturar a forma final do romance e que, por isso mesmo, ela se ressente de conter em si vários estágios diferenres. Há, de fato, alguns pontos frouxos na tessitura geral, insisto, na impressionante coesão alcançada, o ponto de tensão mantido na maior parte das páginas. Se destaquei em especial a parte arcaica é talvez porque, localizada no início, ela já nos deslumbra de saída, o restante, portanto, pegando-nos prevenidos e já afeiçoados aos meios e recursos do escritor.
O que ele criou foi uma narrativa-fluxo incessante, que tem uma dicção muito ampla, correndo o risco de esfacelar-se. Para evitar isso, seu talento de estrategista poético encontrou a solução perfeita: pequenos capítulos concentrados e plásticos, verdadeiramente rapsódicos. Sem falar nas pequenas joias lapidares, ocultas no “enredar de fios”: “…continuou falando silêncios…”; “…porque aquela manhã foram muitas manhãs…”; “…o empoeirado chão lhe abrigou sereno, com seus modos amenos de abrigar tanto a semente quanto o cadáver…”; “…como o tempo que depois de desfalecer precisa o corpo reencontrar para o seu estar…”; “perfume é coisa rara em terra em que bala se alastra…”
Agora só me resta convidar o leitor a tentar decifrar (e torná-lo mais conhecido, porque ele o merece) esse “livro escrito em osso, pecado e purgatório”. Osso, pecado, purgatório, signos de paisagens físicas e morais calcinadas e agônicas.
(escrito especialmente para o blog Monte de Leituras em junho de 2014)
NOTAS
[1] Ed. Nova Aliança, 2012.
[2] Entre outros, o leitor identificará referências, veladas ou mais óbvias, a Guimarães Rosa, a João Cabral de Melo Neto, a José Saramago, a Borges, a Graciliano, a García Márquez.
E mais Milton, Sheherazade, Homero e tantos outros, como se pode verificar no longo trecho abaixo:
“Conta o cantador de versos que ao fim da praça com diversos livretos à venda, e que muitos dos versos que agora proclama aprendeu ali, como a história de um príncipe que voava com uma ave misteriosa, e de outro que matava suas esposas todas as manhãs, e de uma princesa que, raptada, enganava seu raptor com todos os homens que encontrava, e de uma outra princesa que contava histórias que não acabavam nunca, e de um poeta cego que escrevia um livro enorme sobre o céu e o inferno com a ajuda das filhas, e de um outro poeta cego que escrevia livros e mais livros com a ajuda do tempo e da eternidade, como se estivesse perdido no labirinto da imensa biblioteca da torre que deveria ligar o mundo dos homens aos céus, e de ainda outro poeta cego que mendigava e cantava a ira de um guerreiro temido que se afasta das batalhas e depois, para vingar o amigo, retorna a matar e morrer na mesma intensidade, e bem pareceria até que todos os poetas fossem cegos, mas havia ainda as aventuras de homens vestidos em metal, montados em cavalos, enfrentando dragões, vilões e bruxos que se organizavam rumo a uma terra distante que buscavam recuperar e por ela morreriam, e de jovens apaixonados que preferiam morrer a não vivenciar seus amores, e outras muitas outras histórias de toda feição e feitio que a voz de um cantador pudesse pôr em verso e enredo…”
[3] Ele é insatisfatório porque não dá conta do essencial da história, e também não combina com a gravidade da linguagem (mesmo com seus elementos picarescos e paródicos, decerto). É certo que os tais “intrépidos andarilhos” são uma espécie de elemento desassossegante no imobilismo sertanejo, e fazem com que o protagonista queira abandonar seu lugarejo, e é certo que eles são inúmeras vezes citados, entretanto não creio que funcionem para o título, o que é piorado pelo “outras margens”, vago e insosso.
[4] Conheceremos sua história pregressa.
[5] Devo dizer que li o romance duas vezes e ainda considero os capítulos referentes ao ilusionista bem menos convincentes do que os do padre.
[6] E como confirmação do que coloquei nos parágrafos anteriores, a próxima frase: “Mas ainda existe muita selvageria habitando este mundo”.
A esta passagem podemos ligar outra, mais próxima do final: “… a sua única coragem talvez fosse apenas a estranha necessidade de continuar, como um rio que não sabe onde ou quando irá desaguar, ou se irá algum dia desaguar.”
[7] Há um travejamento meio à Guimarães Rosa/ Manoel de Barros na linguagem: “De tanto repetir, a gente aprende ou esquece, que é sempre a mesma coisa”. No entanto, há momentos que considero menos felizes, rebarbativos, por exemplo; “O que canta a musa antiga já acabou. Agora é só se alevantar e pegar rumo. No pé adiante é que se vai. Se é tua a parte feita, o por fazer é o por fazer. E quando se lascar todo, tá chegado então. Não tem graça nem simpatia, nem arte nem engenho. O único mistério é não ter mistério nenhum.” Felizmente, a tessitura narrativo-poética que Adriano Lobão Aragão imprime ao seu livro sustenta até essas quedas retóricas.
Mas a parte mais fraca do romance, felizmente poucas páginas, e por isso nem a incluo na minha síntese acima é a do barqueiro que nunca sai do rio e não pesca nada, apenas existe ali indefinidamente (meio A terceira margem do rio), uma não-existência consentida. Há todo um trabalho de paródia (no sentido de apropriação a sério das leituras do autor) admirável em Os intrépidos andarilhos; nesse entrecho, porém, fica-se mais próximo do pastiche.
[8] “(…) inúmeros versejadores, inúmeros declamadores, inúmeros vendedores de alívio para tudo, em formas mil, seja em pomada, em garrafa, em raiz ou raspa de pau, e sempre acompanhado de inúmeras histórias que entretinham o povo ante a ânsia de uma mala prestes a ser aberta, tendo, diziam, uma cobra por conteúdo, e do veneno da cobra extraía-se muitos produtos ora anunciados, e na fala o espetáculo da paciência animada e novos resquícios do interminável poema. E repetiu esse escutar diversos vezes, atento a todos os detalhes e variações, pois diante de uma nova fonte, a esperança de realinhar a voz da história pulsava forte em suas veias, mas, após inúmeras audiências, era evidente que todas as narrações de todos aqueles famigerados divulgadores dos milagres da ciência e das misturas eram sempre as mesmas e, inevitavelmente, a mala com a cobra, origem de todos os lenitivos que anunciavam, jamais seria aberta, como caixa de alívio e de males que herdaríamos do princípio da narrativa.”
[9] Exemplos de boa fatura poética do autor de Os intrépidos andarilhos:
dois rios (de as cinzas as palavras)
há em minha terra dois rios
silenciosos
um
estendido em verde tapete de aguapé
onde não mais trafegam canoas
apenas diminutas criaturas buscando seu pasto
outro
árido tapete árabe
onde todos caminham acima de sua face
então (de as cinzas as palavras)
em perene forma permanece em idade e fortuna
tudo que no tempo não muda nem tempos nem vontades
nem mentira nem verdade penetra a forma profunda
somente em mim depositou-se irrelevante mudança
talvez desnecessária dança que o cair das folhas trouxe
talvez inseto da noite que de seu brilho descansa
quem sabe silêncio de outrora agora outra hora propaga
antes de ilusão inata à matéria apurar sua volta
em perene forma precisa mas dispersa inexata
somente em mim depositou-se irrelevante reverso
de não mais crer nos versos dessa inútil lira agridoce
emendatio (de “A Coluna de São Simeão”)
corrigir um ato
refazer a coluna
reanotar cada indicação do caminho
onde não há horizonte
restam nuvens por solução
reelaborar o caminho
para continuar o mesmo
toda obra de um homem
se refaz no tempo
como tudo que é sólido
se desmancha no sangue
um homem busca corrigir seu tempo
que sozinho se esvai
não saber teu nome liberta (de “Yone de Safo”)
não saber teu nome liberta
a tarefa de nomear-te
não mais um substantivo, mesmo próprio
mas a ordem absoluta do caos
então chamo-te poesia
quando recolhes o mais tênue lirismo
na dimensão infinita de um sorriso
e quando passas breve e leve
entre silêncios justapostos
teu nome é brisa
e rompendo o silêncio te chamo lira
nomeio teu ser presságio
onde outros chamariam acaso
e não por acaso, em tua aparição repentina
juntar queria a teu nome todas as sensações
na mais profunda sinestesia
e se acaso perguntasse
que reposta me daria?
que adianta um nome
se nada mais estaria
nesse nome sua dona
que nunca mais veria?
então juntaria teu nome
a todos os nomes da vida
e em cada coisa querida
ali teu nome estaria
quando desejar não é ter
mas querer mais além ainda
mesmo apenas guardar um nome
entre as lacunas da vida
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