[Adriano Lobão Aragão]
O.G. Rego de Carvalho, autor de “Ulisses
entre o amor e a morte” e “Rio subterrâneo”, faleceu em Teresina, no dia 09 de
novembro de 2013. Entretanto, a morte não é capaz de silenciar o artista.
Permanece, é claro, a tristeza pelo passamento de um homem admirável; permanece
o luto, o respeito e a comoção pela dor da família, amigos, leitores,
admiradores. Mas permanecem também seus inestimáveis escritos, que mantêm viva
a sua voz. Tomemos como exemplo “Ulisses entre o amor e a morte”, publicado em
1953, que considero um livro bastante desafiador pelo fato de utilizar-se de
diversas lacunas narrativas e por, à primeira e incauta vista, soar um tanto
pueril para leitores supostamente mais exigentes, conforme já escutei algumas
vezes, quase sempre utilizando a densidade de “Rio subterrâneo” como parâmetro.
Porém, acredito que é justamente nesse ponto que está boa parte da beleza de
“Ulisses...”. Pueril não é a obra, mas o universo retratado, a gradativa
experiência de Ulisses, afastando-se da infância e sendo levado para um outro
mundo repleto de novos desafios, entre a perda do pai e a descoberta do amor.
Pueril é o olhar desse menino Ulisses, desconcertado diante de Arnaldo após uma
pergunta (”– Ulisses, você já...”) completada com um gesto despudorado; estranhando
o comportamento do irmão José; negando para si mesmo o nascente amor por
Conceição. “Quente era a manhã, em julho” costuma ser apontado, com bastante
razão, como um dos mais poéticos capítulos da obra, mas meu preferido chama-se
“Amava-a, sim”. Trata-se de uma divagação de Ulisses, lutando até altas horas
da noite contra seus próprios sentimentos, buscando diversos subterfúgios e
negações para, enfim, render-se a uma inevitável constatação e afirmar para si
mesmo que amava Conceição, “e repeti diversas vezes que a amava com loucura”.
Ora, para representar de maneira tão poética as sutilezas dos ritos de passagem
de Ulisses, o autor primou pela linguagem mais adequada a tal empreitada: sutil
e poética.
A estrutura por vezes lacunar é
outro aspecto deveras relevante. Cada momento vivenciado caracteriza-se
justamente pelas fraturas provocadas pelo amadurecimento vindouro. Além, é
claro, de enriquecer a obra com a cumplicidade do leitor que se vê mais
envolvido com a obra sempre que se dispõe a dialogar com tais lacunas, como por
exemplo no capítulo “Estava pedrando”, reproduzido integralmente a seguir, em
que somos impelidos a refletir junto ao narrador, por conta do corte narrativo
ao final do capítulo, acerca das mudanças corporais da adolescência: “Certa
manhã em que banhávamos no Poti, atirando-nos de uma pedra no leito raso e
arenoso, senti uma estranha dor no bico do peito, descobrindo-o, depois,
levemente intumescido: \ – Está pedrando – disse Norberto, ao sair de um
mergulho. / Maravilhado com a revelação, estendi o corpo na areia da praia, e
pus-me a considerar.”
Engana-se quem menciona que
devemos ler um grande autor, tal qual O.G. Rego de Carvalho, porque precisamos
preservar sua memória através de sua obra. Não é o autor que necessita da nossa
leitura, somos nós quem precisamos aprimorar nossa percepção das possibilidades
expressivas da linguagem; somos nós quem precisamos, através dessa construção literária,
mergulhar num universo de sensações, angústias, desejos e descobertas que
dialoga com a própria condição de existência que nos torna humanos. E é essa
experiência artística que um grande autor gentilmente materializou e que agora
temos o compromisso de preservar e divulgar, para não privar as próximas
gerações de um patrimônio cultural que se realiza, lírica (como em “Ulisses
entre o amor e a morte”) ou
angustiosamente (como em “Rio Subterrâneo”), na difícil experiência de
amadurecer. Obrigado, O.G. Rego de Carvalho. Onde quer que esteja, obrigado por
ter escrito e publicado “Rio subterrâneo” e “Ulisses entre o amor e a morte”.
Publicado no jornal Diário do Povo, Teresina, 26 de novembro de 2013
http://www.diariodopovo-pi.com.br/Jornal/pages/pdf/pdf-2013-11-26-3.pdf
Publicado no jornal Diário do Povo, Teresina, 26 de novembro de 2013
http://www.diariodopovo-pi.com.br/Jornal/pages/pdf/pdf-2013-11-26-3.pdf
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