[Adriano Lobão Aragão]
[Jornal Diário do Povo, coluna Toda Palavra, Teresina, em 21 de agosto de 2012]
Os legionários Dado, Rocha, Russo e Bonfá |
Segundo depoimentos publicados na época pela extinta revista Bizz,
Renato Russo havia preparado uma cartilha contendo as orientações de como
deviria ser o segundo disco da Legião Urbana, apropriadamente intitulado Dois. “O efeito Cinderela, vamos ver se
a carruagem vira abóbora, se a banda vai pra frente”. As preocupações de Renato
o levaram a montar em sua cartilha a sequência das faixas, a descrição precisa
delas e o que representavam no emocional coletivo, tudo visando não repetir o
formato visceral do primeiro disco. A questão atual era gravar um novo trabalho
calcado na sutileza, lirismo, dedilhados e violão. Para que o restante da banda
entrasse no clima pretendido, Renato tomava medidas como entregar uma fita K7
para o guitarrista Dado Villa-Lobos contendo músicas de Cat Stevens, Bob Dylan,
Rolling Stones e Paul McCartney. De qualquer forma, é inegável uma queda pelos
arpejos de Johnny Marr, guitarrista dos Smiths. Mas esse universo acústico
permeado de lirismo emanado da vida privada nem sempre foi regra para a Legião
Urbana.
A banda foi formada no início dos anos 1980 após a dissolução do Aborto
Elétrico, uma banda seminal da cena punk de Brasília, que deu origem também ao
Capital Inicial, e de um período no qual o vocalista do Aborto, Renato
Manfredini Jr. apresentava-se acompanhado apenas de um violão, atendendo pela
alcunha de Trovador Solitário. Já com a Legião Urbana em atividade, adentraram
o primeiro palco relevante para o rock nacional dos anos 80 mostrar sua força: o
Circo Voador, montado na praia do Arpoador em 1982. Em 1983, com o Circo já
transferido para a Lapa, a Legião daria um importante passo em sua trajetória.
No dia 23 de julho, após sua apresentação, a banda é convidada a gravar uma
fita demo com a EMI. No ano seguinte começam então a gravação do primeiro disco,
Legião Urbana. A incerteza diante do futuro, herança do Aborto Elétrico, estava
em quase todas as faixas. Extremamente politizado, apresentava críticas a
diversos aspectos da sociedade brasileira. O discurso angustiado do LP de estreia
da Legião só amenizava em algumas poucas canções de amor, como Ainda é cedo, e na última faixa, Por Enquanto, com o significativo verso
“Estamos indo de volta para casa”, como se preconizasse mudanças em sua
sonoridade e discursividade para o próximo trabalho, que dirigia-se a um
ambiente menos social e mais privado. Diante do desafio de seu segundo álbum, a
ideia era fugir do Aborto Elétrico, apesar dessa influência estender-se até o
inevitável retorno às origens em 1987, com o álbum Que País É Esse? [1978-1987], talvez uma nova tentativa de
exorcizar o fardo punk através de uma nova postura: no lugar da fuga de Dois, o acerto de contas de Que País É Esse?.
Seguindo a cartilha de Renato, a primeira música gravada foi Daniel na Cova dos Leões. Com tudo
fluindo conforme o programado (Quase sem
Querer, Tempo Perdido...),
somente em Andrea Doria começaram a
surgir os primeiros empecilhos, mas logo resolvidos. As gravações alternavam
arranjos acústicos (Eduardo e Mônica,
Central do Brasil...) e elétricos (Metrópole, Fábrica...). A última faixa a ser gravada foi “Índios”, tendo violão gravado por Renato, pois Dado mantinha seu
hábito supersticioso de não tocar nenhum instrumento em pelo menos uma das
faixas de cada disco da Legião; embora em Dois, Renato já tivesse assumido a
persona do Trovador Solitário de sua fase pós-Aborto / pré-Legião, gravando
sozinho as faixas Eduardo e Monica e Música Urbana.
A ideia original era gravar um álbum duplo intitulado Mitologia e Intuição, que incluiria
diversas músicas mais antigas, como Faroeste
Caboclo, Conexão Amazônica, Tédio (com um T bem grande pra você) e O Senhor da Guerra, que havia sido
composta para um especial infantil da Rede Globo e teria agora um registro mais
pesado. Entretanto, a EMI considerou o projeto economicamente inviável. A
gravadora preferiu não arriscar, o que deixou Renato chateado, sobretudo com a
exclusão da faixa Grande Inverno da
Rússia (assinada por ele e Ico Ouro-Preto) e de uma vinheta de Bonfá, que
seria a faixa-título e primeira música do disco. Renato considerava as duas
músicas muito boas, mas só fazia sentido gravá-las se estivessem no projeto
original. No lugar da música de Bonfá, na abertura do disco, é possível ouvir
um pouco da música Será envolto a
ruídos de rádio e do hino da Internacional Socialista. Resquícios de um passado
conflituoso que materializava em um disco que, lançado em 1986, venderia mais
de 1,2 milhões de cópias, sendo o segundo álbum mais vendido da banda, atrás
apenas de As Quatro Estações, de
1989, que vendeu mais de 1,7 milhões.
[Jornal Diário do Povo, coluna Toda Palavra, Teresina, em 21 de agosto de 2012]
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