Literatura - leitura, escrita, ensino


Na manhã de sábado, 16 de junho, durante o 10º SALIPI, ministrei palestra intitulada Literatura - leitura, escrita, ensino. Ao longo da conversa com a plateia, comentei os seguintes fragmentos que ajudaram a nortear o tema:


_ Pergunta de aluno: “Professor, a gente estuda literatura pra quê?

I
“A verdade é que não tenho revelações a oferecer. Passei minha vida lendo, analisando, escrevendo (ou treinando minha mão na escrita) e desfrutando. Descobri ser esta última coisa a mais importante de todas. “Sorvendo” poesia, cheguei a uma derradeira conclusão sobre ela. De fato, toda vez que me deparo com uma página em branco, sinto que tenho de redescobrir a literatura em mim mesmo. Mas o passado não é de valia alguma para mim. Assim, como disse, tenho apenas minha perplexidades a lhes oferecer. Estou perto dos setenta. Dediquei a maior parte de minha vida à literatura, e só posso lhes oferecer dúvidas.”

Jorge Luis Borges: “O enigma da poesia”, in Esse ofício do verso, tradução de José Carlos Macedo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p.10

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II
 “Dos diversos instrumentos do homem, o mais assombroso, sem dúvida, é o livro. Os demais são extensões de seu corpo. O microscópio, o telescópio, são extensões de sua vista; o telefone é extensão da voz; depois temos o arado e a espada, extensões de seu braço. Mas o livro é outra coisa: o livro é uma extensão da memória e da imaginação.”

Jorge Luis Borges: “O livro”, in Borges oral & sete noites, tradução de Heloisa Jahn. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p.11
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III 
“Vivemos numa era de ciência e de abundância. O amor e a reverência pelos livros como tais, próprios de uma época em que nenhum livro era duplicado até que alguém se desse ao trabalho de copiá-lo a mão, não respondem mais, obviamente, “às necessidades da sociedade” ou à preservação do saber. Precisa-se com urgência de uma boa poda, se é que o Jardim das Musas pretende continuar a ser um jardim.
O MÉTODO adequado para o estudo da poesia e da literatura é o método dos biologistas contemporâneos, a saber, exame cuidadoso e direto da matéria e contínua COMPARAÇÃO de uma “lâmina” ou espécime com outra.
Nenhum homem está equipado para pensar modernamente enquanto não tiver compreendido a história de Agassiz e do peixe:
Um estudante de curso de pós-graduação, coberto de honrarias e diplomas, dirigiu-se a Agassiz para receber os ótimos e últimos retoques. O grande naturalista tomou um peixinho e pediu-lhe que o descrevesse.
Estudante: – Mas este é apenas um peixe-lua.
Agassiz: – Eu sei disso. Faça uma descrição dele por escrito.
Depois de alguns minutos o estudante voltou com a descrição do Ichtus Heliodiplodokus ou outro termo qualquer, desses usados para sonegar do conhecimento geral o vulgar peixe-lua: família dos Hellichtherinkus, etc., como se encontra nos manuais sobre o assunto.
Agassiz pediu ao estudante que descrevesse de novo o peixe.
O estudante perpetrou um ensaio de quatro páginas. Agassiz então lhe disse que olhasse para o peixe. No fim de três semanas o peixe se encontrava em adiantado estado de decomposição, mas o estudante sabia alguma coisa a seu respeito.”

Ezra Pound. Abc da Literatura. Tradução de Augusto de Campos e José Paulo Paes. 10.ed. São Paulo: Editora Cultrix, 2003. p.23-24
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IV
“É esse engajamento total que resulta nos vários modos de resposta: marginalia, anotações breves, correções de texto, emendas, transcrições. Tomadas em conjunto, todas essas respostas geram uma continuação do livro que está sendo lido. A pena atuante do leitor escreve “o texto em resposta ao outro” (vale lembrar as distintas conotações da palavra “resposta”, do latim reposta). Essas repostas podem variar do fac-símile – que é a aquiescência total –, passar por reações favoráveis ou desfavoráveis a determinadas ideias e chegar à negação absoluta, ao ‘contratexto’. Muitos livros foram escritos como verdadeiros anticorpos a outros livros. Entretanto a verdade principal que se extrai de tudo isso é a seguinte: existe latente em todo ato de leitura consequente a compulsão de se escrever um livro em reposta. A definição de um intelectual é simples: é um ser humano que tem na mão um lápis quando está lendo um livro.”

George Steiner. “O leitor incomum”, in Nenhuma paixão desperdiçada. Tradução de Maria Alice Máximo. Rio de Janeiro: Record, 2001. p.20
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V
“Na prática, o que primeiro observo em muitas turmas não é exatamente a sedução pelo poético, mas um certo temor reverencial, como se as pessoas se sentissem lidando com um discurso quase intimidador no seu hermetismo, e a cuja complexa inteligibilidade supõem que jamais terão acesso. Sob esse ângulo, a poesia parte de uma dupla desvantagem frente à ficção: não é preciso ser “especialista” para se entender ou acompanhar uma história. O poema, em geral, não possui enredo; fica-se com a falsa impressão de que não há nada a acompanhar, e, portanto, não há meio de se falar alguma coisa sobre coisa alguma, como se a lírica fosse prosa por subtração, desfalcada dos elementos que sustentam a narratividade da ficção. A narrativa nos acompanha desde a infância, somos imemorialmente imersos num universo de histórias: as familiares, as comunitárias, as ficcionais, não apenas nos livros, mas também nas revistas, nos filmes, nas telenovelas. A ficção vem a nós; a poesia, nós temos de buscá-la. Daí, invariavelmente, seu caráter diferenciado, exigindo uma postura frente à linguagem que não é regida pelos mesmos mecanismos que regem a ficção. Categorias como personagem, ponto de vista e narrador costumam ser irrelevantes para a análise do poema, sem que muitas vezes, apavorados, saibamos o que pôr em seu lugar. Surge, então, a tendência de refugiarmo-nos na mera descrição externa do poema, arrolando características técnicas que, no máximo, seriam relevantes para um começo de conversa, mas nunca para substituir-se a uma análise. Damos a interpretação por encerrada quando, a rigor, ela sequer começou.”

Antonio Carlos Secchin. Memórias de um leitor de poesia. Rio de Janeiro: Topbooks, 2010. p.17-18 
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VI
“A literatura é, pois, uma forma de ligação com o passado, uma forma de re-vivificá-lo. De aprender com ele, sim, mas mais que isso: uma forma de nos apropriarmos dele, de nos colocarmos como seus herdeiros. A literatura fala pelo passado e faz o passado falar pelo presente.
É compreensível, portanto, que ela tenha sido vista, ao longo dos tempos, como um dos elementos principais da civilização, que é a continuidade, a herança e a atualização do passado no presente. E se no patrimônio do passado incluirmos as línguas clássicas e as línguas nacionais que, a partir do século XIV começaram a se tornar línguas literárias, então fica ainda mais fácil compreender porque, entre todas as artes, foi a literatura a que mais se identificou com o conceito de cultura, de civilização e de nacionalidade.
Ensinar literatura, portanto, em sentido amplo, é criar as condições para que o estudante, o leitor em formação, possa tornar-se ele também um herdeiro desse manancial.”

Paulo Franchetti. Ensinar Literatura para quê?, in revista dEsEnrEdoS, ano I, número 03, Teresina, novembro de 2009. p.7



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