“Antes de iniciar este livro,
imaginei construí-lo pela divisão do trabalho. Dirigi-me a alguns amigos, e
quase todos consentiram de boa vontade em contribuir para o desenvolvimento das
letras nacionais. Padre Silvestre ficaria com a parte moral e as citações
latinas; João Nogueira aceitou a pontuação, a ortografia e a sintaxe; prometi
ao Arquimedes a composição tipográfica; para a composição literária convidei
Lúcio Gomes de Azevedo Gondim, redator e diretor do Cruzeiro. Eu traçaria o
plano, introduziria na história rudimentos de agricultura e pecuária, faria as
despesas e poria o meu nome na capa.” (S. Bernardo, edição de 2008, p.7)
Paulo Honório, protagonista e narrador de S. Bernardo, inicia a
narrativa de sua vida pela gênese material da própria obra em questão. É
preciso esclarecer, antes de história propriamente dita, as circunstâncias que
permearam a redação de seu livro. Mais que a construção de um personagem,
Graciliano Ramos destila a criação de um narrador, fundamental elemento para o
desenvolvimento do romance. É certo que a proposta para divisão do trabalho
como elemento condutor do livro foi uma experiência malfadada, mas bastante
reveladora de certas limitações e características peculiares ao narrador Paulo
Honório. A visão do outro como objeto, tão significativa para compreender o
vazio que irá se apoderou do protagonista, já se manifesta em sua proposta
inicial de trabalho para a realização da obra, na qual após o labor de seus
convocados para a realização dos planos do narrador, Paulo Honório se
encarregaria das despesas e, claro, teria seu nome, e apenas seu nome, figurado
na capa. As funções de tais asseclas, rigidamente estabelecidas pelo narrador,
tornam-se mais claras logo adiante, onde lemos: “Eu por mim, entusiasmado com o assunto, esquecia constantemente a
natureza do Gondim e chegava a considerá-lo uma espécie de folha de papel
destinada a receber as ideias confusas que me fervilhavam na cabeça. O
resultado foi um desastre.” (p.8-9)
Ora, para que tal empreitada fosse efetivamente um fiasco, pelo menos
aos olhos de Paulo Honório, bastava que algo não fosse realizado de acordo com
suas determinações. No caso, a linguagem empolada de Gondim, vista pelo
narrador como “pernóstica”, “safada” e “idiota”, “tão cheia de besteiras” que o
levou a bradar: “– Vá para o inferno, Gondim. Você acanalhou o troço.” (p.9)
Tornava-se evidente que, como manifestação íntima de suas angústias,
expressáveis somente através de sua própria linguagem, Paulo Honório
encontrava-se sozinho com seus demônios, e sua materialização em literatura nem
sua autoridade nem a firmeza de sua índole, muito menos seu dinheiro, poderiam
efetivar. “Afinal foi bom livrar-me da
cooperação do padre Silvestre, de João Nogueira e do Gondim. Há fatos que eu
não revelaria, cara a cara, a ninguém. Vou narrá-los porque a obra será
publicada com pseudônimo. E se souberem que o autor sou eu, naturalmente me
chamarão potoqueiro.” (p.12)
Lembremos que, na abertura do romance, o narrador indica que poria seu
nome, Paulo Honório, na capa. Em seu projeto inicial, fruto de trabalho
coletivo sob sua orientação, talvez até lhe fosse possível estampar sua
identidade, entretanto o que haveria de Paulo Honório nessa suposta obra, além
das letras que compõe seu nome? Numa segunda empreitada, sozinho em seu
labirinto de remorsos, para revelar o que atormenta seu ser e calcar-se no que
haveria de substancial em sua vida, era-lhe preciso apagar o próprio nome.
Apegar-se à falsidade de um nome para revelar a verdade de sua vida. Para
efeito de análise, partamos da premissa, absolutamente fictícia, claro, de que
Paulo Honório realmente publicou sua obra utilizando como pseudônimo o nome de
Graciliano Ramos. Tal afirmação, absurda se apresentada para além dos limites
intrínsecos da obra, mas curiosamente revela-se em consonância com a ânsia de
posse que domina Paulo Honório. Incapaz de dominar a narrativa de outros
personagens (Gondim, Padre Silvestre, João Nogueira), eis que toma posse da
escrita efetuada pelo autor material. E nada impede que Paulo Honório não seja
igualmente um falso nome cuja utilização revelaria não uma mera identidade
física, mas angustiante confissão de um ego em ruínas.
Um outro aspecto do ponto de partida dessa narrativa merece atenção.
Ciente de sua precária formação, incapaz de ler algo além de algumas notícias
de jornal e artigos de agricultura, Paulo Honório requereu uma ajuda coletiva
para escrever o livro de sua vida. Decepcionado com os resultados, inicia, ele
mesmo, a redação da obra, alinhando-se a um estilo sóbrio, econômico, próximo
da fala, mas sem recair ao coloquialismo rasteiro. Uma linguagem direta,
reduzida ao essencial, mas justamente por isso revela-se altamente revisada e
expressiva. Como que um homem tão rude e ignorante, analfabeto nas precárias
condições de uma cela de cadeia aos dezoito, seria capaz de elaborar tão
elevado romance? O fato é que a reflexão de sua verossimilhança pouco me
interessa diante da narrativa em si, a memória de um homem rude que nomeia o
romance de sua vida com o título S. Bernardo; talvez porque efetivamente a
fazenda S. Bernardo lhe pertença, enquanto Madalena, sua esposa e causa maior
da desestruturação de seu ser, não. Portanto, talvez sua única possibilidade de
alento, após a perda da esposa (que não se deixou dominar pela rudeza do
marido) seja sentir a posse de sua memória amarrada ao seu consequente ato de
narrar. Talvez...
[publicado no jornal Diário do Povo, coluna Toda Palavra, Teresina, 29 de maio de 2012]
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