[Adriano Lobão Aragão]
A abordagem cinematográfica de
uma obra literária acompanha o cinema ao longo de toda sua história. Os
exemplos são inúmeros, em suas múltiplas vertentes, sendo, em alguns casos, uma
mesma obra literária abordada com grande subserviência ilustrativa e
empobrecedora (Memórias póstumas, de
André Klotzel, 2001) ou com audaciosa releitura alegórica (Brás Cubas, de Julio Bressane, 1985). A liberdade criadora de
Bressane contrasta com a leitura pontual de Klotzel. Já o caso de Luiz Fernando
Carvalho, ao abordar Lavoura arcaica,
apresenta um aspecto curioso; se, à primeira vista, o delírio alegórico-visual
desenvolvido no filme poderia nos remeter à vertente aqui representada por
Bressane, na verdade não se distingue do esforço de Klotzel em buscar a
ilustração conveniente da obra original. Em outras palavras, Bressane busca
realizar uma criação a partir de uma obra literária, enquanto Klotzel realiza
uma leitura pautada na montagem cinematográfica. Luiz Fernando Carvalho
conduziu o olhar de suas câmeras com o livro de Raduan Nassar entre as mãos,
como se a leitura do livro substituísse a criação cinematográfica.
A despeito de qualquer crítica, Lavoura arcaica é constituído por uma
arregimentação bastante bem cuidada em termos de iluminação, trilha sonora,
enquadramento, não deixando detalhe algum adentrar no enquadramento sem que
haja uma necessária referência à construção de seu discurso fílmico.
Tecnicamente, estamos diante de uma obra que salta aos olhos pelo esmero de sua
linguagem estético-visual. Mas a construção desse intricado labirinto que busca
emular a complexa sintaxe de longíssimos períodos da obra de Raduan Nassar
revela-se repleta de armadilhas. Qual seria o saldo dessa experiência?
Em primeiro lugar, o aspecto
narrativo parece secundário em relação à construção de elementos simbólicos. O
íntimo de André, protagonista da obra, é mais representativo que suas ações exteriores. Deise Ellen
Piatti e Acir Dias da Silva, em O
discurso cinematográfico de Lavoura arcaica, afirmam que, “endo a câmera
conduzida pelo fluxo de imagens que provêm do inconsciente de André, sua
linguagem é impregnada de significados cujas expressões têm o valor de
autênticos símbolos, porquanto expressam conteúdos ainda desconhecidos que são
pontes lançadas a uma longínqua margem invisível. O símbolo significa
possibilidade e início de um sentido mais amplo e elevado, que está além da
nossa capacidade de compreensão naturalizada.” A representação simbólica em
linguagem cinematográfica é sempre um desafio delicado para qualquer diretor, correndo
constantemente o risco de realizar uma obra calcada excessivamente em si mesma,
como se o desafio estilístico de representar sua simbologia imagética fosse seu
verdadeiro objetivo ao invés das relações humanas ali configuradas.
A narrativa desenvolve-se a
partir do fluxo de memória de André, num movimento convulsivo entre passado e
presente, impregnada de carência e culpa, culminando numa vivência angustiada e
devaneadora. O conturbado mundo de André, como era de se esperar, volta-se
constantemente para a infância, sempre pontuando o discurso do protagonista com
a linguagem utilizada, seja no livro ou no filme.
A câmera simulando a sensação do menino André, rememorada anos depois
por ele mesmo, é um exemplo de marca fundamental da leitura de Carvalho:
colocar a câmera e, por extensão, o espectador, na condição do protagonista. A
labiríntica linguagem de Raduan é também o simulacro do estado mental de André.
A linguagem delira junto ao personagem. Na criação artística, ordem e unidade
se coadunam para simular o caos introspectivo e sua peculiar maneira de
traduzir o mundo. Para Paul Valery (Discurso
sobre a estética), “a unidade da natureza só aparece em sistemas de signos
fabricados expressamente para tal fim e o universo não passa de uma invenção
mais ou menos cômoda.”
Essa representação visual de uma
obra intimista revela-se como um momento relevante da produção cinematográfica
nacional por seu mergulho na caracterização alegórica de um universo literário
que pouco se deixa apreender por uma transposição imagética ilustrativa. Ainda
que para tanto, Luiz Fernando Carvalho tivesse que aliar a ousadia visual e o
delírio narrativo a uma rígida leitura da obra original (trechos inteiros foram
transpostos para a fala de personagens e narrador/personagem) e de uma produção
técnica laboriosa e racionalizante. Ainda que se possa incutir à Lavoura
arcaica a pecha de obra excessivamente cerebral, é conveniente lembrar, através
de Valery, que “a razão é uma deusa que pensamos velar, mas que, na
verdade, dorme, em alguma gruta de nosso espírito: aparece diante de nós, às
vezes, para nos obrigar a calcular as diversas probabilidades das consequências
de nossos atos.”
[Publicado no jornal Diário do Povo, coluna Toda Palavra, Teresina, 15 de maio de 2012]
[Publicado no jornal Diário do Povo, coluna Toda Palavra, Teresina, 15 de maio de 2012]
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