Retrato de um Artista quando Jovem

[Halan Silva]



Reporto-me ao título de uma obra de James Joyce (1882-1941), A portrait of the artist as a young man (Retrato de um artista quando jovem), para falar do romancista piauiense O. G Rego de Carvalho (1930) que, em 1967, envolveu-se numa acalorada polêmica literária veiculada em dois importantes órgãos da imprensa local, os jornais O Dia e O Piauhy, à época sob a responsabilidade de Leão Monteiro e de José Camilo da Silveira Filho, respectivamente.
 
A polêmica teve início quando O. G. Rego de Carvalho, sabendo que Dom Avelar Brandão Vilela (1912-1986) pretendia criar uma faculdade de filosofia em Teresina, publicou em março de 1967, no jornal O Dia, o artigo Convite à humildade. Nesse artigo, defendeu a ideia de que somente metade das vagas de professor da faculdade de filosofia deveria ser preenchida por piauienses. Necessariamente, a outra metade deveria ser ocupada por professores oriundos da região sudeste. Para O. G. Rego de Carvalho, deveria prevalecer aqui algo semelhante ao que prevaleceu durante a fundação da Universidade de São Paulo (USP) em 1934, ou seja, a contratação de renomados professores estrangeiros, como foi o caso do etnólogo Claude Lévi-Strauss (1902-1985), do historiador Fernand Braudel (1902-1985), do geógrafo Pierre Monbeig (1908-1987), do filósofo Jean Maugüé (1904-1985) e do sociólogo Roger Bastide (1898-1974), todos integrantes da missão francesa que aportou no Brasil em 1935. Do outro lado da querela, mormente, sob pseudônimo (Vespasiano, Ayres, Conselheiro Acácio), respondiam aos artigos de O. G Rego de Carvalho importantes intelectuais da cidade: Clemente Honório Parentes Fortes, M. Paulo Nunes e Valdemar Sandes (Carlos Eugênio Porto era parte na polêmica, mas optou por não responder às críticas de O. G. Rego de Carvalho). Não tardou para que a polêmica perdesse o foco, as respostas a O. G. Rego de Carvalho passaram a não mais versar sobre questões ligadas à fundação da faculdade de filosofia, mas sobre a qualidade da obra de estreia de O. G. Rego de Carvalho na literatura, o romance Ulisses entre o amor e a morte (1953) que, em 1967, achava-se em sua segunda edição[1]. Embora tenha sido bem recepcionado por críticos e escritores consagrados, no Piauí o romance Ulisses entre o amor e a morte foi duramente atacado. No Brasil, a introdução de novas mentalidades nos meios acadêmicos parece algo quase sempre tardio e dificultoso. Em seu Antes del fim, Ernesto Sábato noticia que o filósofo Schiller (1759-1805) e o astrônomo Hartmann (1882-1959) lecionaram numa das mais tradicionais universidades da Argentina, na Universidad de La Plata.
 
A polêmica alcançou seu termo em outubro de 1967, quando O.G. Rego de Carvalho, no artigo Não Ceder, Lutar sempre, despede-se de seus leitores e anuncia sua partida para a cidade do Rio de Janeiro. A vida de O. G. Rego de Carvalho foi marcada por dois fatores, a precocidade e a atuação. Entre 1949 e 1950, na casa dos vinte anos, ao lado de H. Dobal (1927-2008) e M. Paulo Nunes (1925), dirigiu o Caderno de letras meridiano, que era o reflexo de uma onda de publicações literárias encabeçadas por jovens escritores. Em depoimento, o poeta Ferreira Gullar (1930) declarou-me que, em São Luís do Maranhão, nesse mesmo período, ele e Lago Burnett (1929-1995), lançaram três revistas: Saci (1948), Letras da Província (1949) e Afluente (1950) e, que, paralelamente, José Sarney (1930) e Bandeira Tribuzzi (1927-1977) fizeram uma revista literária intitulada A Ilha. Quando saiu o terceiro e último número do Caderno de letras meridiano, em 1950, Lago Burnett veio a Teresina e manteve um ligeiro contato com os diretores do Caderno de letras meridiano. No Rio de Janeiro, O. G. Rego de Carvalho deu curso à sua carreira literária. Publicou suas obras num dos mais importantes registros editoriais do país, a editora Civilização Brasileira, e conquistou, com o romance Somos todos inocentes (1972), obra escrita deliberadamente para calar seus detratores, que afirmavam que O. G. Rego de Carvalho só escrevia sobre si mesmo, o cobiçado prêmio Coelho Neto, da Academia Brasileira de Letras[2]. De volta ao Piauí, O. G. Rego de Carvalho, nos anos setenta, envolveu-se em mais uma polêmica literária, desta vez com intelectuais da Academia Piauiense de Letras (a questão versava sobre a existência ou a não existência de uma literatura piauiense). Enquanto a saúde permitiu, O. G. Rego de Carvalho revisou e cuidou pessoalmente de sua obra literária. Durante anos, sem impor nenhum ônus a seus leitores, distribuiu seus livros na intenção de difundi-los o máximo possível, uma vez que as escolas (públicas e privadas) e a Universidade Federal do Piauí não valorizavam satisfatoriamente os autores piauienses.
 
Diversamente do que costuma acontecer no Piauí, em face da boa receptividade de que dispõem, os escritores gaúchos não são constrangidos a deixar os pagos do Rio Grande do Sul ou a ganhar prêmios literários excepcionais. Confirma o que eu digo a trajetória literária de Érico Veríssimo (1905-1975), de Josué Guimarães (1921-1995), de Mário Quintana (1906-1994), de Dyonélio Machado (1895-1985), de Luís Fernando Veríssimo (1936), de Augusto Meyer (1902-1970), de Raul Bopp (1898-1984), de Lila Ripoll (1905-1967), de Cyro Martins (1908-1995), de Luís Antônio de Assis Brasil (1945), de Moacyr Scliar (1937-2011), de Caio Fernando Abreu (1948-1996) e de tantos outros que não convém citar por agora. Não tivessem Da Costa e Silva (1885-1950), O. G. Rego de Carvalho (1930), H. Dobal (1927-2008), Assis Brasil (1930), Carlos Castelo Branco (1920-1993), Francisco Pereira da Silva (1916-1985), Permínio Asfora (1913-2001), Esdras do Nascimento (1934), Mário Faustino (1930-1962), Ávaro Pacheco (1933) e Torquato Neto (1944-1972), a despeito do talento e da tenacidade, ganhado prêmios literários ou sido aclamados nos grandes círculos literários do país, talvez hoje restassem no lugar destinado à maioria dos escritores piauienses - no ostracismo. Portanto, o pior lugar para um escritor piauiense é o Piauí.
 


notas
[1] Ulisses entre o amor e morte foi incluído no volume Amor e morte (1957), edição que foi desautorizada pelo autor.
[2] Os escritores, sobretudo aqueles cuja obra merece ser lida e relida, não fizeram outra coisa que não escrever sobre si mesmo. Para Mário Quintana toda confissão não transfigurada em arte é canalhice.


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