João Adolfo Hansen, em Notas sobre o Gênero Épico, antológico prefácio para o volume de poemas
épicos brasileiros da coleção Multiclássicos, editada pela USP, observa que “enquanto duraram as instituições do mundo
antigo, a epopéia narrou a ação heróica de tipos ilustres, fundamentando-a em
princípios absolutos, força guerreira, soberania jurídico-religiosa, virtude
fecunda. Desde a segunda metade do século XVIII, a universalização do princípio
da livre-concorrência burguesa que impôs a mais-valia objetiva a todos e contra
todos foi mortal também para ela, pois o heroísmo é improvável e inverossímil
quando o dinheiro é o equivalente universal de todos os valores. Desde então,
apesar de algumas tentativas românticas de revivê-la nos séculos XIX e XX, é um
gênero morto.” Entretanto, George Steiner, em sua obra Nenhuma Paixão Desperdiçada, alude a um esforço bastante recorrente
na literatura inglesa de retomar Homero. O mesmo não deve ser absolutamente
alheio às demais literaturas ocidentais: “Impressionam-nos,
principalmente, a qualidade e diversidade da extensa linhagem de tradutores e
autores que reagiram ao estímulo de Homero. É a complexidade das modulações, é
a riqueza de visões que nos leva de Lydgate e Caxton a Ulysses e Omeros. Não foi apenas em Keats que o Homero de Chapman exerceu sua atração
desconcertante. O que seria da Ilíada
projetada por Dryden se ele tivesse persistido além do Livro I. Não sei que
outro poema épico em inglês depois do Paradise Regained de Milton – e como Homero está presente em Milton! – equipara-se em
prestígio e maestria de narrativa à Ilíada de Pope. Encontram-se instâncias de inequívocas ‘domesticidades’, como
no caso de uma decoração interior em estilo flamengo na Odisséia de Cowper e do tratamento que ele deu ‘àquela
espécie sublime que deve sua própria existência à simplicidade’. Os Cantos
homéricos de Shelley revelam tanto seu
virtuosismo poético quanto sua intimidade com os textos líricos gregos. (...)”
Em terras brasileiras, as tentativas de reviver o
gênero épico incluem a Prosopopéia
(1601), de Bento Teixeira; O Uraguai
(1769), de Basílio da Gama; Vila Rica
(1773), de Cláudio Manuel da Costa; Caramuru
(1781), de Santa Rita Durão; I-Juca
Pirama (1851), de Gonçalves Dias; e A
Confederação dos Tamoios (1856), de Gonçalves de Magalhães. Também merece
atenção o trabalho empreendido por Odorico Mendes, que, em meados do século
XIX, dedicou-se avidamente em divulgar e traduzir Virgílio e Homero para o
português. Falecido em Londres, a 17 de agosto de 1864, deixou prontas para
edição suas versões da Ilíada e da Odisséia, publicadas posteriormente. A
relevância do trabalho de Mendes pode ser aferida através do seguinte fragmento
de Machado de Assis, publicado originalmente no Diário do Rio de Janeiro, em 26
de setembro de 1864: “Odorico Mendes é
uma das figuras mais imponentes de nossa literatura. Tinha o culto da
antiguidade, de que era, aos olhos modernos, um intérprete perfeito.
Naturalizara Virgílio na língua de Camões; tratava de fazer o mesmo ao divino
Homero. De sua própria inspiração deixou formosos versos, conhecidos de todos
os que prezam as letras pátrias. E não foi só como escritor e poeta que deixou
um nome; antes de fazer a sua segunda Odisséia, escrita em grego por Homero,
teve outra, que foi a das nossas lutas políticas, onde ele representou um papel
e deixou um exemplo. Era filho do Maranhão, terra fecunda de tantas glórias pátrias,
e tão desventurada a esta hora, que as vê fugir, uma a uma, para a terra da
eternidade.”
Alencar não permaneceu indiferente a esta busca de
recuperação da épica. Afeito a polêmicas, o notório romancista cearense foi
protagonista de uma acirrada pendenga a respeito de A Confederação do Tamoios, conforme nos lembra João Adalberto
Campato Jr, em A Confederação de
Magalhães: Epopéia e Necessidade Cultural (constante no volume
Multiclássicos, já citado): “Como se
sabe, a publicação de A Confederação dos Tamoios deu azo, ainda no ano de 1856, a uma das polêmicas mais significativas
e acirradas da literatura nacional, em que se enfrentaram, resguardados sob
pseudônimos, pelas páginas dos jornais da Corte, o romancista cearense José
Martiniano de Alencar – que, além de listar erros de várias espécies no poema,
negava-lhe brasilidade – e os defensores de Gonçalves de Magalhães, entre os
quais destacamos o Imperador Pedro II, o frei Francisco de Monte Alverne e o
escritor Manuel de Araújo Porto Alegre. Desde aquela época até os tempos que
correm, os críticos, em sua maciça maioria, não fazem senão repetir as censuras
de Alencar ao poema e seu autor (...)”
Era de se esperar que em breve José de Alencar se
dispusesse a transpor para suas próprias páginas os elementos que tanto
defendeu em sua famosa polêmica. Justamente no ano seguinte, publicaria O Guarani, obra que, de maneira
praticamente imediata, o elevou ao posto de autor consagrado. Mas um dilema se
apresenta diante do escritor: como, inevitavelmente mergulhado na tradição
impregnada na cultura letrada e no próprio idioma, criar a literatura de um
novo povo (como pretendia Alencar) recalcando antigos arquétipos
euro-ocidentais apenas com o bronze da cor local?
[Publicado no jornal Diário do
Povo, coluna Toda Palavra, Teresina,
20 de dezembro de 2011]
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