[Adriano Lobão Aragão]
É possível que “A
Tempestade” seja a mais híbrida de todas as peças produzidas por William
Shakespeare. Obra elaborada no limiar de sua carreira, mantém os méritos
estéticos, poéticos e contextuais que imortalizariam o bardo inglês, mas deixa
entreaberta uma questão que não alcançou suas demais produções: seria “A
Tempestade” uma comédia? Para além de um mero exercício de classificação, as
diversas implicações políticas e filosóficas presentes na peça, numa estrutura
que evoca intensamente seus dramas históricos, transformam a obra em questão
num curioso exemplo de autor transcendendo os próprios gêneros que ajudou a
definir, seja ao longo do desenvolvimento histórico do teatro ocidental, seja
no próprio contexto em que escreveu e encenou suas peças. Não se afirma aqui
que “A Tempestade” possa ser apontada como um ponto culminante da maturidade
artística de Shakespeare, mas certamente trata-se de uma obra onde a ousadia do
bardo não se limitou ao tema e à estrutura técnica, mas também contagiou sua
própria concepção de gênero dramático. Tanto que séculos depois, adaptar “A
Tempestade” para o cinema contemporâneo implicaria inevitavelmente no
enfrentamento desse dilema.
Na primeira versão de
seu texto “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, datado de
1935-36, Walter Benjamin afirma que “toda forma de arte amadurecida está no
ponto de intersecção de três linhas evolutivas.” Em primeiro lugar, Benjamin
observa que “a técnica atua sobre uma forma de arte determinada.” Ora, como
fazer jus a uma adaptação do Shakespeare de “A Tempestade” dispondo somente do
que tecnicamente a arte cinematográfica já elencou como convencional ou, mais
sintomático ainda, como porto seguro para uma adaptação que anseia revelar-se
classicamente bem-sucedida. Já em sua concepção, Shakespeare direciona sua peça
para a superação da convencionalidade. Como segunda linha evolutiva, Benjamin
menciona que “em certos estágios do seu desenvolvimento as formas artísticas
tradicionais tentam laboriosamente produzir efeitos que mais tarde serão
obtidos sem qualquer esforço pelas novas formas de arte.” É certo que o
hibridismo de “A Tempestade” é plenamente visível em diversas produções
romanescas e cinematográficas, tornando-se, em boa parte do romance dos séculos
XIX e XX e no cinema de massa do século XX, uma tônica constante. O efeito
artístico que pudesse emular “A Tempestade” de Shakespeare para as telas, na
última década do século XX perpassa, inevitavelmente, pelo questionamento do
desenvolvimento das formas cinematográficas de expressão.
Quando o cineasta
Peter Greenaway dedicou-se a tal tarefa, em 1991, seu controverso currículo já
apontava para a busca de maneiras ousadas de superar tais dilemas. Apresentando
visíveis influências de Federico Fellini (“Satyricon”), Pier Paolo Pasolini (a
Trilogia da Vida) e até mesmo do infame Tinto Brass (“Calígula”), Greenaway
orquestrou uma obra na qual nenhuma construção alegórica ou efeito de montagem
resolveria o impasse do hibridismo de gênero, já bastante navegado na
cinematografia. Mas, assim como Júlio Bressane (“Cleópatra”, a alegórica versão
com Alessandra Negrini), Greenaway desafia a própria representação cinematográfica
ao compor sua “ópera das telas” como um teatro moderno que se realiza através
do cinema. Se Benjamin indica como terceiro ponto o fato de que “transformações
sociais muitas vezes imperceptíveis acarretam mudanças na estrutura da
recepção, que serão mais tarde utilizadas pelas novas formas de arte”, resta
saber se a recepção de Greenaway para a obra de Shakespeare será ou não
incorporada por outros cineastas portadores de relevantes realizações. Mas a
arte, como a vida, é sempre feita de riscos.
[publicado no Diário do Povo, coluna Toda Palavra, Teresina, 1º de novembro de 2011]
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