“Não me destruas, poema, / enquanto ergo / a estrutura do teu corpo / e as lápides do mundo morto.” Assim se iniciam os versos de Órfica, poema de Dora Ferreira da Silva constante em Hídrias (2004), seu último volume de poemas publicado em vida. De tão lírica, tênue, metafísica, a poesia de Dora Ferreira da Silva é sempre um desafio, como se fosse a tradução diáfana de um mundo mítico ou a busca de um possível reencantamento deste mundo nas coisas mais simples, um jardim, uma chuva, um pássaro. A recorrente imagem do pássaro desafia a rigidez de toda lápide. E como lírica demiurga, a poeta ergue um mundo sob as cinzas de um outro abandonado ao caos que, imperceptível aos olhos cansados de uma realidade sem mistério, balança suas crinas e dispara pela noite eterna na forma de um cavalo azul.
A imaginação reflexiva, a consciência mítica, o diálogo com o simbólico são chaves constantes em sua obra, como se o tempo não lhe fosse linear, e que em seus versos emanasse o complexo tempo dos mitos, sobretudo os gregos, a quem se entrega a voz e o culto. Em Ártemis de Éfeso, também de Hídrias, louvou a “Mãe luminosa, mãe sombria, mistério que tudo abriga, / sê propícia ao trigo do meu canto.”
Poeta e tradutora paulista, nascida em 1918, difícil saber onde nasce sua poesia, que vivencia a Grécia antiga, mas não se circunscreve somente a ela. Suas traduções dariam um interessante indício de onde realmente provém Dora Ferreira da Silva. Rilke, Hölderlin, San Juan, significativas preferências indicam o caminho trilhado. Toda tradução é um diálogo. Tivesse Dora dedicado-se somente ao nobre ofício de traduzir, e nos legado apenas sua versão das Elegias de Duíno e Vida de Maria (Rainer Maria Rilke), bem como a poesia mística de San Juan de La Cruz, sua importância já seria fundamental. Não apenas pela escolha dos autores, mas pela riqueza do trabalho empreendido, buscando o que há entre o poético e o transcendente, e pela influência que deixou disseminada entre leitores de língua portuguesa.
Mas a literatura movimenta-se não apenas pelos livros, estendendo seus espasmos por revistas que, inúmeras vezes, foram mais que porta-vozes de gerações, mas catalizadores de anseios e ideais coletivos. Uma revista literária relevante torna-se uma âncora, um promontório ou mesmo uma senda instigante a guiar seus leitores aos oásis escondidos entre o caos e a indiferença que costumam dominar o mundo prosaico. E Dora não foi fundamental somente na criação de uma única revista desse porte, mas, em épocas distintas, fundou duas que, ainda hoje, mantém-se como modelo de comprometimento de corpo e alma com a poesia e o conhecimento: Diálogo (juntamente com seu marido, Vicente Ferreira da Silva) e Cavalo Azul. A disponibilização desse acervo, como bem lembrou Claudio Willer em ensaio dedicado a Dora, revelaria inestimáveis surpresas ao público atual, bem como a profunda influência exercida por seus editores. Entre os depoimentos daqueles que conviveram com Dora, é notória a reverência dedicada a ela, como um oráculo ou a detentora de uma certa revelação órfica.
Mas, para além de seus ofícios de editora e tradutora, emana de sua existência um forte comprometimento poético que a fez autora. De Andanças (1970) a Hídrias (2004), Dora mergulhou suas águas míticas na linguagem lírica. Poemas simples em sua complexidade, densos no que têm de etéreos. E só estreou em livro com mais de 50 anos de idade. Sua obra poética é marcada por um lirismo de maturação, não de envelhecimento. Poesia de quem se habituou a observar o tempo e seus enigmas, como se fosse (talvez seja) a poesia uma religião.
“Um dos equívocos mais comuns é tentar catalogar a poesia de Dora. Uns querem enquadrá-la na geração de 45. Outros situam como poesia dita feminina. Penso que Dora é livre demais para qualquer um desses rótulos.” Assim manifestou-se Donizete Galvão, no ensaio Dora Ferreira da Silva e a chave do sagrado. Realmente, os versos de grandes poetas costumam recusar naturalmente as rotulações, mesmo aquelas criadas a partir deles mesmos. Também é certo que classificar não é compreender, e a dimensão mítica e simbólica que Dora imprime em seus versos torna a tarefa ainda mais árdua. Mas tal esforço analítico não se trata de um artifício absolutamente inválido, mas sim um recurso que auxilia a busca de quais outros aspectos dialogam com sua poesia, em que âmbito pode ser correlacionada. O que torna ineficaz, e creio que seja sobretudo nesse contexto que Donizete direcione sua crítica (daí o termo “catalogar”, usado com propriedade pelo poeta), é a leitura direcionada, buscando adequar os versos da poeta a alguma teoria ou ideologia reducionista ao invés de debruçar-se sobre o emaranhado de referências gnósticas, míticas, místicas e líricas que Dora permeou para compor sua obra. O equívoco maior de tal procedimento seria então querer ver na poesia aquilo que, a priori, já se decidiu ver, fechando assim os olhos para o que a poesia tem de mais fascinante, sua imprevisibilidade, seus mistérios. E por falar em mistério, fica a incerta certeza de que, se Dora não nasceu em 1918, mas séculos, muitos séculos antes, seu falecimento não se assinala em 2006, e nem se saberá quando.
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