houve tempo em que andaste pelo deserto, e nestas areias talvez tenha tua letra deixado, antes das pegadas dos gigantes que outrora caminhavam sob o céu devastarem a distância entre tuas palavras e não restou sequer o dia em que fulminaste a todos para que seus pés não profanassem novamente as marcas de tua linguagem terrena, mas resta a fabulação do instante em que o último gigante tombado pela tua ira teve o rosto disposto face a face com o primeiro aedo e antes de morrer ditou-lhe o pouco que guardou na retina quando certa vez olhou para o chão e contemplou as linhas de tua trama, e na planta de seus pés um outro vate encontrou impressas outras marcas de tua fábula, e tão intensa era tua presença nestes fragmentos dispersos que não foi possível a nenhum dos que a tenha tocado fugir do ensejo de propalá-la, ainda que muitas faces tivessem agora os inúmeros fragmentos que a cada canto se multiplicavam, até que surgisse a necessidade de inventar a escrita de teus versos e que todos esses intérpretes das antigas vastidões desse deserto se propusessem a juntar suas versões e, uma após outra, reunissem o emaranhado de tua longínqua palavra, e levantassem nessa faina o estranho monumento de linguagem que os encaminhasse até tua própria voz, perdida em eternidade, mas descontente da ultrajante tradução ao infinito erguida confundisse mais que suas falas, mas seu próprio ato de grafar seus signos e o que deles pudessem decifrar, posto que todo o monumento ruiu, assim como tombaram os gigantes, assim como muito depois também tombou a biblioteca em que, num último esforço sobre a face deste mundo, um ser sem nome e alheio a tua ira dispôs de todas as vidas em que pôde existir para recompor um único verso de tua palavra, guardada na imensidão das versões reunidas neste único volume que resistiu à queda e ao fogo e que, neste deserto, tenho agora em minha mãos enquanto questiono se posso, diante da eternidade, recusar tua leitura
houve tempo em que andaste pelo deserto, e nestas areias talvez tenha tua letra deixado, antes das pegadas dos gigantes que outrora caminhavam sob o céu devastarem a distância entre tuas palavras e não restou sequer o dia em que fulminaste a todos para que seus pés não profanassem novamente as marcas de tua linguagem terrena, mas resta a fabulação do instante em que o último gigante tombado pela tua ira teve o rosto disposto face a face com o primeiro aedo e antes de morrer ditou-lhe o pouco que guardou na retina quando certa vez olhou para o chão e contemplou as linhas de tua trama, e na planta de seus pés um outro vate encontrou impressas outras marcas de tua fábula, e tão intensa era tua presença nestes fragmentos dispersos que não foi possível a nenhum dos que a tenha tocado fugir do ensejo de propalá-la, ainda que muitas faces tivessem agora os inúmeros fragmentos que a cada canto se multiplicavam, até que surgisse a necessidade de inventar a escrita de teus versos e que todos esses intérpretes das antigas vastidões desse deserto se propusessem a juntar suas versões e, uma após outra, reunissem o emaranhado de tua longínqua palavra, e levantassem nessa faina o estranho monumento de linguagem que os encaminhasse até tua própria voz, perdida em eternidade, mas descontente da ultrajante tradução ao infinito erguida confundisse mais que suas falas, mas seu próprio ato de grafar seus signos e o que deles pudessem decifrar, posto que todo o monumento ruiu, assim como tombaram os gigantes, assim como muito depois também tombou a biblioteca em que, num último esforço sobre a face deste mundo, um ser sem nome e alheio a tua ira dispôs de todas as vidas em que pôde existir para recompor um único verso de tua palavra, guardada na imensidão das versões reunidas neste único volume que resistiu à queda e ao fogo e que, neste deserto, tenho agora em minha mãos enquanto questiono se posso, diante da eternidade, recusar tua leitura
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