Renegada injustamente a um segundo plano ao longo da tradicional historiografia das civilizações humanas, o papel e a história da mulher têm sido revisitados e reavaliados nas últimas décadas, sobretudo com o advento de uma visão feminina ante sua própria implicação histórica e social. Se ainda no século XVIII se discutia a própria condição de humanidade das mulheres, e no século XIX eram alvo de tentativas pretensamente científicas de impor uma suposta “inferioridade” em relação ao homem branco europeu, os atuais estudos acadêmicos, juntamente com as diversas conquistas sociais e culturais, apresentam um produção consistente e relevante que embasa a emancipação feminina em relação a uma história que, tradicionalmente, relegava as mulheres, quando muito, a um segundo plano.
O trabalho desenvolvido pela historiadora Michelle Perrot, autora de diversas obras sobre o tema, traduzidos em vários idiomas, inclusive no Brasil, apresenta-se como uma importante contribuição para essa nova visão. Em seu livro Minha história das mulheres (São Paulo: Contexto, 2007), nascido da grande repercussão de um programa da rádio France Culture, a autora busca desenvolver uma visão pessoal sobre o tema. Entretanto, uma revisão da história das mulheres jamais seria algo particular, pois o que se encontra no trabalho de Perrot é uma história que remonta às relações com os homens e com as outras mulheres, com as crianças e o vaticínio de ser mãe; às representações de masculino e feminino e suas implicações nas classes sociais, no ambiente público e no privado. Não seria essa uma história apenas das mulheres, mas da própria existência humana e sua inevitável, e necessária, relação entre mulheres e homens, afinal, como a própria autora menciona, “uma história ‘sem as mulheres’ parece impossível”. (p.13) O curioso, e até paradoxal, nessa afirmação é que, até bem pouco tempo, a história era escrita como se fosse possível e, sobretudo, natural excluir de seu papel histórico. A leitura da obra de Michelle Perrot, dentre outras, dirige-se a um esforço legítimo de suprimir um pouco dessa lacuna secular.
Minha história das mulheres é dividida em 5 partes: Escrever a história das mulheres; O corpo; A alma; O trabalho das mulheres; Mulheres na cidade; além de um balanço do percurso empreendido, suas implicações, ausências e perspectivas contemporâneas, intitulado E agora?. Na primeira parte, a autora expõe as origens de sua própria trajetória acadêmica e sua relação com o tema, que não era, inicialmente, de seu interesse, mas sua vivência na Sorbonne e, sobretudo, na Universidade de Paris VII – Jussieu, nos anos 70, configurou-se como uma revelação perante o inegável silêncio que pairava ante as fontes históricas de uma história das mulheres. É a partir desse contexto que a Perrot lança as questões de seu livro: “o que mudou nas relações entre os sexos, na diferença dos sexos representada e vivida? Como e por quê? E com quais efeitos?” (p.16)
O “silêncio” a que se refere em relação às fontes de uma história das mulheres está intimamente ligado ao fato de que as mulheres eram pouco e, por isso, pouco se falava delas, pouco se escreveu sobre elas, e pouco elas próprias deixaram escrito sobre si mesmas: “As mulheres deixam poucos vestígios diretos, escritos ou materiais. Seu acesso á escrita foi tardio. Suas produções domésticas são rapidamente consumidas, ou mais facilmente dispersas. São elas mesmas que destroem, apagam esses vestígios porque os julgam sem interesse. Afinal, elas são apenas mulheres, cuja vida não conta muito. Existe até um pudor feminino que se estende à memória. Uma desvalorização das mulheres por si mesmas. Um silêncio consubstancial à noção de honra.” (p.17)
Observa-se que o desafio de Michelle Perrot é bastante. Transpor o silêncio de séculos, enfrentando a escassez de fontes, que são a matéria-base para o trabalho da historiadora, e a própria postura que se impôs às mulheres na emancipação de sua visão de si, torna seu trabalho ainda mais louvável. Note-se que “é praticamente impossível, para essas épocas antigas, alcançar o olhar das mulheres, pois elas são ‘construção do imaginário dos homens’”. (p.24) E ainda que corra o risco de ser, mesmo que em breves pormenores, excessivamente tendenciosa, o que dizer de uma outra história, a tradicionalmente masculina, que foi abertamente excludente ao longo de diversos séculos?
[publicado no jornal Diário do Povo, coluna Toda Palavra, Teresina, 20 de setembro de 2011]
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