“Escrever é lutar contra a ignorância”

entrevista com Halan Silva
 


Lançado durante o Salão do Livro do Piauí, Salipi, 2011, Cambacica é mais nova criação de Halan Silva. Uma novela ambientada na Teresina dos dias atuais, repleta de referências intertextuais. Nascido em Campo Maior, em 1970, graduado em Filosofia (UFPI) e Direito (UESPI), mestre em Educação e Estudos Culturais (ULBRA- RS), Halan Kardeck Ferreira Silva publicou: 16 poemas (Edições DesLivres), As formas incompletas: apontamentos para uma biografia (Oficina da Palavra/Instituto Dom Barreto), Cantiga de viver (org. juntamente com João Kennedy Eugênio/ Fundação Quixote), Representação e identidade cultural do vaqueiro no cinema novo (Editora Nova Aliança) e, agora, Cambacica (Editora Nova Aliança), mote para a conversa que se segue.


Adriano Lobão Aragão - Poesia, biografia, ensaio e, agora, novela. A que se deve essa diversificação em sua obra?
Halan Silva – Não sei bem o motivo da diversidade de minha escritura. Sinto vontade de fazer e faço (dentro de minhas limitações). Ultimamente estou escrevendo um romance ambientado em minha terra, Campo Maior, mas não sei se vou conseguir finalizá-lo. No início escrevia poesia, mas creio que a poesia é o mais elevado dos gêneros literários, não é à toa tanta versalhada por aí. Em regra, a minha percepção estética me obriga a destruir noventa por cento do que escrevo. Quem se mete pelos caminhos estreitos da literatura só pode ser louco. Ernesto Sabato largou uma carreira bem sucedida na ciência para se aventurar na literatura. Ele passou por momentos de grandes dificuldades, porém escreveu El Tuneo. Não sei o que me prende à literatura, apenas sinto prazer que não encontro noutros lugares: na religião, nos negócios ou na política. Estou bem certo de uma coisa: Quem escreve quer se comunicar com o mundo. Curiosamente, escrever é sempre um ato de solidão, mas de uma solidão diferente, que não é sinônimo de isolamento ou sofrimento. Enquanto eu tiver respirando, vou lendo escrevendo, pois o leitor precede o escritor.

Adriano – E Cambacica, como se originou?
Halan - Depois de ler A hora da estrela, de Clarice Lispector, desta vez numa edição especial, resolvi escrever um ficção ambientada em Teresina durante os dez primeiros anos do século vinte e um. Tudo partiu da epígrafe do Livro: “! Pergunta: toda história que já se escreveu no mundo é uma história de aflições?”. Então, eu resolvi contar, não exatamente uma história de amor aflito. Por meio desses fragmentos, eu mostro Teresina num processo de transição de uma cidade pequena para uma cidade grande, onde, de um lado, eu mostro os preconceitos de uma aristocracia atrasada e, de outro, o processo de urbanização que vem mudando significativamente a paisagem natural e cultural de Teresina. Outro dia alguém me falou que eu deixe muita coisa de fora. Sim é verdade. Deixei. É que não pretendia fazer um inventário da cidade de Teresina. A intenção era mostrar pontos de vista que poderiam ser reconhecidos pelas pessoas. O Salgado Maranhão me falou que Cambacica era uma novela infanto-juvenil e provinciana, não creio que seja isso não. Curioso! O Caio Douglas achou que eu escrevia à moda antiga, como ele disse, perecido com o estilo de Machado Assis, essas coisas. Embora Cambacica possa parecer sintético, eu digo que não é, pois deixei lacunas a fim de tornar o leitor participativo na narrativa. É impressionante como no Brasil ainda se mede um bom livro pelo número de páginas. Quando o O.G. Rego de Carvalho escreveu Ulisses entre o amor e a morte, recebeu todas as críticas possíveis, infundadas a maior parte delas, é certo hoje. Disseram que Ulisses... era autobiografia (e o que não é confissão para quem escreve?), que ele não sabia escrever, que ele não tinha mais assunto, o diabo. Para mostrar que sabia escrever. O.G. escreveu Somos Todos Inocentes e, com ele, recebeu o prêmio Coelho Neto, da ABL. Durante muito tempo o O.G. Rego de Carvalho não divulgou essa premiação.

Adriano - O.G. Rego de Carvalho foi uma grande influência?
Halan - O O.G. Rego de Carvalho é um belo cidadão, todavia há por aí quem se disponha a fazer graça imitando a postura física dele. Embora eu saiba que para os humoristas não há nada sagrado, particularmente, eu não vejo graça nenhuma. Na juventude o O.G. Rego de Carvalho foi muito aguerrido e atuante na cidade, mas veio-lhe doença e dele fez o que bem quis. Ele é uma influência para todos nós que gostamos de boa literatura. O Jantar, que é o primeiro capítulo de Cambacica, é uma homenagem ao O.G. Rego de Carvalho. O Gilvani Amorim entendeu tudo, ele disse: “O primeiro capítulo parece coisa do O. G. Rego de Carvalho”. No capítulo Nossa Senhora do Rosário faço um intertexto com ele. Lembra que em Somos todos Inocentes há uma passagem em que o personagem Raul aparece jogando dama? Pois é, em Cambacica, ele joga com o Dr. Ferraz. Também faço um intertexto com Assis Brasil, mais precisamente, com o Assis Brasil de Beira rio beira vida. Dou um desfecho que ele, deliberadamente, deixou para o leitor dar, ou seja, o destino de Luiza e de Mundoca. 0s títulos de alguns capítulos apontam para outros autores: Graciliano Ramos, Miguel Torga, Machado de Assis, Manuel Bandeira, enfim.
 
Adriano - Promover, divulgar um livro é uma tarefa tão árdua quanto escrevê-lo?
Halan - Divulgar um livro é sempre doloroso, no Piauí o doloroso vai para o superlativo. Você publica um livro e simplesmente nada acontece no outro dia. O O.G. Rego de Carvalho teve a sorte de receber uma série de críticas negativa no jornal O Piahuy. Tivesse ele escrito hoje, nada aconteceria. No país, não existe mais jornalismo literário e as universidades, as públicas mormente, só produzem dissertações e teses (produzem bem), as revistas de circulação nacional só fazem indicações de livros das grandes editoras. As escolas do Piauí, por hábito de consumir só o que vem de fora, simplesmente ignoram a produção local. O governo e os municípios também ignoram a produção local. Não adianta só publicar, é preciso que haja circulação das publicações para fomentar o mercado editorial. Os intelectuais do Piauí são, na maioria, os que já leram alguma coisa e não estão interessados em ler mais nada. Tudo me parece paradoxal, pois na era da informação e da tecnologia, que facilita a editoração, estamos cegos pelo excesso de luz e aturdidos diante de tantas publicações. Certa feita, o professor Cineas Santos disse que no Piauí há mais escritores que leitores. Isso, ao que me parece, compromete a circulação do livro. Veja que no Rio Grande do Sul a coisa é bem diferente. Os escritores gaúchos não precisaram sair de lá para acontecer: Mário Quintana, Dionélio Machado, Josué Guimarães, Veríssimo, Luiz Antonio Assis Brasil, Moacyr Scliar, Luís Fernando Verissimo, enfim. Esses autores são adotados nas escolas e por isso são valorizados. O Leonardo Dias, depois que o Cineas deixou de editar, vem se arriscando por essas águas, mas o risco de afogamento é alto. O professor Cineas Santos disse-me que ninguém iria ler meu livro, que tudo ia dar em nada. No entanto, não sou pessimista. Ataliba o vaqueiro, de Francisco Gil Castelo Branco, passou cem anos no limbo e depois ressurgiu das cinzas, no meio universitário (coisa que o autor não imaginou). Franz Kafka, hoje considerado um dos maiores escritores do século vinte, no início teve pouco mais de quarenta leitores. Konstantinos Kaváfis teve meia dúzia deles. Fernando Pessoa, em vida, editou Mensagem e a repercussão de sua poesia foi branda, e por aí vai. Um professor, aqui da cidade, disse que os autores piauienses não sabiam escrever, que ele escrevia melhor. Discordo desta besteira, Assis Brasil ganhou o prêmio Walmap duas vezes e ainda o Coelho, da ABL; o O.G. Rego de Carvalho ganhou o Coelho Neto, da ABL; o H. Dobal, que não ligava para essas coisas, ganhou o Porta de Livraria, de O Globo, e o Jorge de Lima, do INL; o Mário Faustino fez o que fez. Se alguém procurar saber quem são os escritores contemporâneos de São Paulo, do Rio, de Minas, de Santa Catarina, do Paraná, da Bahia, de Goiás, de Rondônia, etc, só poderá concluir uma coisa: que não devemos nada a ninguém, que tudo é só uma questão de ignorância e de preconceito.

Adriano - O que fazer diante dessa ignorância e desse preconceito?
Halan - Resta seguir em frente, não dá para voltar. O Villa-Lobos dizia que escrevia cartas para o futuro e não aguardava respostas. Portanto, nestes tempos sombrios, em que já não há solidez no mundo, publicar é antes de tudo um ato de esperança. Escrever é lutar contra ignorância (inclui-se a do autor). Digo isso porque o Mário Faustino pregava que o escritor medíocre não era inofensivo, ele compromete seriamente a língua.

Adriano- E quais os próximos passos do escritor Halan Silva?
Halan - Como disse, no momento estou escrevendo um romance que se intitulará Atoleiro. É uma viagem ao passado de Campo Maior, que foi uma cidade próspera, marcada por uma linda paisagem, e que hoje é uma cidade pobre. Esse livro é o maior desafio que já me propus, não sei se vou conseguir realizá-lo. Depois, pretendo publicar alguns poemas que venho traduzindo por meio de um processo de recriação literária. O H. Dobal, que traduzia muito bem, dizia-me que para traduzir um poema não era necessário um conhecimento aprofundado da língua alienígena, bastavam duas coisas essenciais: 1) Uma boa percepção poética, 2) E um conhecimento razoável da língua para onde se vai fazer a tradução, ou melhor, a recriação poética. Como entendo que poesia é sempre algo pessoalíssimo, venho traduzindo os poemas que me agradam (esse é o critério). Pretendo fazer uma publicação alternativa, fora do mercado editorial, tipo as que você, Adriano, costuma fazer. Se a divina providência me favorecer, gostaria de encerrar a minha incursão escrevendo um livro de poemas. Ao dizer isso, afirmo que para mim a poesia, diferentemente da ciência, que se vale da verdade proposicional, tem um quê de mistério que me encanta, embora há quem diga que a possua por inteiro, mas eu me recuso a acreditar nisso. No dia que a arte for tomada como verdade proposicional, eu desisto dela. Ah, estava esquecendo: eu e o João Kennedy, com base em depoimentos, estamos organizando a biografia do professor Cineas Santos, que a despeito do que possam pensar seus detratores, é uma pessoa de grande importância para a cultura do Piauí.
 


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