Dau Bastos fala do livro que organizou sobre Luiz Costa Lima






“Já foi o tempo em que o país se orgulhava do espírito macunaímico”


Dau Bastos publicou os romances Das trips, coraçãoSnifClandestinos na América e Reima, a tese Céline e a ruína do Velho Mundo, a biografia Machado de Assis: num recanto, um mundo inteiro e alguns outros livros. É professor de Literatura Brasileira na Universidade Federal do Rio de Janeiro. A seguir, discorre sobre Luiz Costa Lima: uma obra em questão (2010), que lhe coube organizar.


Wanderson Lima: Como surgiu a ideia de um livro de entrevistas com Luiz Costa Lima?
Dau Bastos: Pensei em organizá-lo assim que comecei a fazer mestrado em Literatura Brasileira, duas décadas atrás, quando constatei o paradoxo de o grande professor do Instituto de Letras da UERJ enfrentar muita dificuldade para ser compreendido pelos alunos de graduação e pós. Eu próprio, já com trinta anos, boiava em boa parte de suas aulas. No início, pensei em algo muito simples, tipo Para entender Luiz Costa Lima, feito de capítulos explicativos. Aos poucos, achei que a melhor maneira de facilitar a compreensão de suas descobertas e reflexões seria recorrendo a um gênero que, a meu ver, deveríamos cultivar intensamente: a entrevista literária. Não do modo banalizado como costuma aparecer nos periódicos, e sim como texto capaz de conciliar dinamismo e profundidade. O último passo no sentido de realizar o projeto foi abri-lo à participação do maior número possível de interlocutores, escolhidos entre professores de instituições brasileiras e estrangeiras que conhecem bem a obra do Luiz. O plano demorou para ser realizado, mas isso foi até bom, pois durante esse tempo o entrevistado escreveu mais que nunca, chegando à cifra invejável de 21 volumosos títulos.


WL: Luiz Costa Lima: uma obra em questão me parece um livro que se bifurca em dois objetivos, já que tanto oferece uma súmula das ideias do autor como possibilita ao entrevistado, muito autoexigente, nuançar distinções e aprofundar argumentos. Esta dupla visada foi pensada previamente pelo organizador ou a ideia era apenas oferecer uma introdução?
DB: Mesmo sem compreender boa parte do que o Luiz dizia, percebi, desde as primeiras aulas, que o problema não era dele, e sim meu. Faltava-me, como a boa parte dos estudantes, professores e produtores de literatura de nosso país, acesso a uma vasta bibliografia sobre ficção e poesia, desde a Grécia até a atualidade, pela qual o Luiz circula como se estivesse em casa. Assim se explica que o intuito inicial fosse mapear essas leituras, de modo a criar condições de diálogo, com a consequente síntese das ideias mestras do pensamento do entrevistado: controle do imaginário, mimesis e assim por diante. Acontece que o Luiz se mantém em constante ebulição. Ao se revisitar, não se limitou a reproduzir o que havia publicado: além de escrever como se conversasse, exerceu uma autocrítica feroz sobre seu quase meio século de produção e, muitas vezes, chegou a novos achados sobre questões anteriormente enfrentadas. Em síntese, por mérito seu – e certamente dos entrevistadores, escolhidos pela argúcia, competência e seriedade –, tenho a alegria de dizer que o livro ficou infinitamente mais rico do que o imaginei.


WL: O que, a seu ver, Luiz Costa Lima: uma obra em questão acrescenta às reflexões do entrevistado?
DB: Como o Luiz precisou parar sua produção frenética para perspectivar aquilo que já havia colocado no papel, pôde formular com outras palavras certos pensamentos que, assim, ganharam um brilho diferente e, beneficiados pela passagem do tempo, puderam ir ainda mais longe. A navegação pelo todo da obra também possibilitou ao entrevistado explicitar conexões impossíveis no âmbito exclusivo de um livro. Dessa maneira, criou condições de o leitor perceber, com toda a clareza, a articulação de vários dados que, em conjunto, contribuem significativamente para a compreensão do fenômeno literário.


WL: As condições atuais de nossa academia são mais favoráveis a uma compreensão da obra de Luiz Costa Lima ou continuamos, para lembrar um célebre ensaio do entrevistado, com medo da teoria?
DB: Em consonância com o otimismo dos teóricos da estética da recepção – que acreditam na ampliação paulatina do horizonte ficcional do ser humano –, vejo a teoria como uma área que atrai cada vez mais os estudantes de Letras. A ampliação de sua acessibilidade encontra explicação em paralelos que façamos com áreas tão distantes quanto a informática, cujo conhecimento se propaga continuamente, facultando a um número cada vez maior de pessoas conhecerem softwares e demais recursos. No caso do Luiz, já não é possível dizer que sua obra é muito complicada: quem encontrar alguma dificuldade terá apenas de adquirir nosso livro, que, segundo vários depoimentos de leitores, realmente é um verdadeiro mapa da mina. Isso é muito bom, pois haverá um momento em que dizer que não leu nada de Costa Lima vai ser um mico e tanto. Uma das mostras de seu crescente alcance, dentro e fora da universidade, se encontra num dos últimos textos que José Castello publicou no “Prosa & Verso”, doGlobo, iniciado por uma lista de críticos brasileiros importantes na qual se vê primeiro Antonio Candido e, em seguida, nosso entrevistado – tratado, assim, como o nome mais expressivo de sua geração. Ora, reconhecer o valor do Luiz é admitir que a teoria é imprescindível. Daí a tristeza de ouvir, num importante congresso realizado na Faculdade de Letras da UFMG, um colega do Rio defender o retorno da crítica impressionista como se fosse uma espécie de abordagem cheia de molejo que o enrijecimento acadêmico teria estigmatizado. É igualmente desesperador ver e ouvir colegas de todo o Brasil tratando a escrita em prosa e verso nos moldes dos velhos manuais de literatura e, o que é pior, sentindo-se no direito de meter o cacete em quem tenta desenvolver a teoria entre nós; geralmente são tão toupeiras que sequer percebem a ficção e a poesia lhes escapando inteiramente por entre os dedos. Para não me limitar aos docentes, digo igualmente do grande constrangimento de ver graduandos e pós-graduandos fazendo suas escolhas de professores e orientadores pela refração a essa atividade penosa que é pensar. Já foi o tempo em que o país se orgulhava do espírito macunaímico, mas restam largas ilhas de preguiça a nos matar de vergonha.

* Leia a entrevista completa na nova edição de dEsEnrEdoS [aqui].

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