Ascensão e queda de quatro rudes plebeus

[Adriano Lobão Aragão]
 




Em troca de uma faixa publicitária atrás do palco do Espaço Cultural do Lago Norte, uma loja de material fotográfico entregou a Gutje Worthmann várias caixas de filme Super-8. O baterista resolveu então produzir e dirigir o média-metragem Ascensão e Queda de Quatro Rudes Plebeus, apresentando uma fictícia e irreverente “trajetória” de sua banda, Plebe Rude. Gravado em condições precárias, narrado por Renato Russo, o filme inicia seus 40 minutos apresentando os integrantes da banda em situações insólitas. Helena, mulher de Gutje, vestida em estilo vamp, empurra o corpo do guitarrista Jander Bilaphra escada abaixo. O baixista André X surge numa construção abandonada vestindo uma capa preta. Na saída de um teatro, Gutje é flagrado cercado por fãs e dando autógrafos e o guitarrista Philippe Seabra saía de arbustos para dançar balé em um estacionamento.

De forma nonsense, a banda que tinha o cachorro Shakey como vocalista resolve substituí-lo por um ser humano. É esse o mote para André e Philippe encontrarem Jander numa barragem, antes de serem alvejados pela descarga de um extintor de incêndio desferida por Gutje. Mais patético ainda seria a participação do personagem Manfredo, o “caçador de talentos” interpretado por Renato Manfredini Jr, vulgo Renato Russo. Extasiado pelo som da banda que acabada de descobrir, o personagem simulava um ataque epilético, rolava pelo chão e cobria-se com um tapete. Quando a música termina, Renato se levanta, arruma o terno e sai, dando à banda um contrato que os tornaria milionários. Comemoram em um banquete onde lhes é servida a “cabeça de Lemos”, numa referência aos irmãos Fê e Flávio Lemos, que futuramente formariam o Capital Inicial. Enquanto dormem após a farra, o grupo tem sua fortuna roubada por um ladrão, cujo visual incluía a mais que manjada máscara preta nos olhos, interpretado pelo irmão de Philippe, Bernardo Seabra, que cantava na banda XXX e formaria posteriormente a Escola de Escândalos. Restou à banda trabalhar como garis no Exião da Asa Sul.

Nos filmes de rock realizados a partir de meados dos anos 50, era comum contar a “história” do artista em foco com ficção permeada por leves traços da realidade para permitir que o público reconheça seu ídolo. Foi assim que os Beatles montaram seu irônico e divertidíssimo retrato em A Hard Day’s Night (1964) e Help! (1965) (este último bem mais fictício que o primeiro), assim Elvis Presley imortalizou sua imagem no cinema; mas a ficção barata com roteiro caótico que colocou Bill Haley em Rock Around the Clock (1956) sendo perseguido por um caçador de talentos entre uma música e outra, e o pseudo-documentário This Is Spinal Tap (1984) parecem ser, ainda que de forma indireta, os modelos mais próximos do filme desses rudes plebeus.

Uma diferença significativa é que os filmes de rock americanos rendiam muito dinheiro e projetavam novos ídolos, mas o Super-8 de Gutje, herdeiro do cinema udigrudi dos anos 70, foi movido apenas por seu esforço pessoal e pela curtição dos companheiros. Ainda assim, a realização chegou a ganhar o prêmio de melhor filme experimental do Primeiro festival de Cinema Super-8 de Brasília. Porém, antes dessa ficção irreverente, a verdadeira história da banda iniciava-se mais ou menos assim: numa típica tarde de Brasília, Philippe Seabra voltava para casa vindo do colégio quando encontrou-se com André Mueller no ônibus. Vizinhos no Lago Norte, André perguntou se ele queria montar uma banda. Philippe, então com 14 anos, estudava na Escola Americana e tocava guitarra na banda Caos Construtivo com três amigos iugoslavos. Seu repertório consistia em versões de músicas do Stiff Little Fingers, Clash, Buzzcocks, Ramones e Undertones. O único instrumento de verdade a que tinham acesso era um baixo Fender Precision emprestado pelo próprio André. O convite foi aceito e, no dia 7 de julho de 1981, nascia uma banda ainda sem nome.

Era André que, morando na Inglaterra alguns anos antes, mandava para os amigos em Brasília fitas K7 com o que de melhor encontrava naquela Londres impregnada pelo pós-punk. De volta ao Brasil, André tocava baixo na banda Os Metralhas, que contava com Marcelo Bonfá, futuro baterista da Legião Urbana. Foi em um show dos Metralhas que Philippe encontrou o baterista Gutje Worthmann. Recém-saído da banda Blitz64, Gutje foi chamado para um ensaio na casa de Fê Lemos, no Lago Norte, onde também aconteciam os ensaios do Aborto Elétrico, banda de Renato Russo, da qual Fê fazia parte. Quando ainda morava em Curitiba, André e seu irmão eram chamados por um tio de “plebe ignara”, termo cunhado pelo jornalista Stanislau Ponte Preta e escolhido, com a devida adaptação, como nome da banda, em detrimento da outra opção, Os Zulus. Com o passar do tempo, passaram a contar com Jander Bilaphra, o “Ameba” nos vocais e na guitarra. Uma das marcas registradas da Plebe passou a ser o contraste da voz grave de Ameba sobreposta ao tom mais pueril dos vocais de Philippe.

A Plebe Rude realizaria sua obra seminal em 1986, o EP O Concreto Já Rachou, que contém seu repertório mais coeso e politicamente engajado que popularizou a imagem da banda, um tanto distante do sarcasmo e irreverência nonsense que permeou a produção de Ascensão e Queda de Quatro Rudes Plebeus. Praticamente abolida da trajetória da banda, sua experiência “cinematográfica” talvez respire entre o concreto rachado nas entrelinhas de músicas como “Minha Renda”, em que debocham de seu próprio produtor, líder dos Paralamas do Sucesso: “Já sei o que vou fazer ter fama e muita grana / vou mudar meu nome para Herbert Vianna”. Eis que entre os mais rudes plebeus sempre há espaço para a sátira e a auto-ironia.




[publicado no jornal Diário do Povo, coluna Toda Palavra, Teresina, 05 de julho de 2011]

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