[Adriano Lobão Aragão]
Em artigo no qual versava sobre a poesia e o papel do poeta, Gerardo Mello Mourão escreveu que “Cantar é ser – ensinava ainda o poeta nos Sonetos a Orfeu. / Ser é saber a sua própria história. / O poeta é o contador de sua própria história, da história de seu ser e de seu existir.” Fiel ao compromisso com a palavra, que considerava sagrada, a trajetória poética de Gerardo inclui verdadeiros monumentos literários calcados no cantar, no narrar, no existir em meio a um mundo moldado entre o lírico e o épico e impregnado da mítica existência humana ao longo de sua história e suas histórias. Nascido em janeiro de 1917, na cearense Ipueiras, e falecido em maio de 2007, no Rio de Janeiro, o poeta Gerardo legou-nos uma poesia que remonta a eras bem mais antigas, como “No País dos Mourões”, “Peripécia de Gerardo” e “Rastro de Apolo” (reunidos no volume “Os Peãs”), e “Invenção do Mar”. Acima de tudo, reafirmamos, seu compromisso era essencialmente com a poesia: “Publicar ou não publicar não é problema para um escritor de verdade. Vender livros também não. Baudelaire, em toda a sua vida, ganhou apenas 17 francos com seus livros. Kafka nunca teve mais de 40 leitores. Quanto a mim, escrevo apenas para comparecer com estes livros na mão, diante de Deus, no Dia do Juízo Final, no Vale de Josafá, que espero esteja para chegar. Acho até que tenho vendido demais e publicado demais. Deus vai me cobrar isto. Quando um jovem escritor está aflito para publicar um livro, desconfie do livro e do escritor. Começo por mim, que desconfio de meu primeiro livro. Depois, tome nota: um dos maiores poetas de nosso tempo e de todos os tempos, Kavafis, nunca editou um livro em vida, apenas distribuía, de vez em quando, quarenta ou cinquenta cópias de um de seus poemas a quarenta ou cinquenta pessoas que conhecia em diversos países da Europa.” Não se sabe o que terá dito Deus a Gerardo, mas agradeço-lhe por ter publicado demais, como afirmou, e desejo que a leitura de seus livros lhe sirva de prece para seus pecados editoriais.
A religiosidade permeava sua vivência, ele que declarou amar as alegrias do corpo e da alma, “mas estou afetado pela tristeza existencial (ou será ontológica?) do ser humano, pois sei, como Léon Bloy, que a maior desgraça que pode ocorrer ao ser humano é a desgraça de não ser santo. Eu não sou santo. Esta é a tristeza medular de minha vida. (...) estou vivo e fui maculado por quase todos os pecados mortais, os chamados pecados mortais. Quem quiser que os imagine.” Os depoimentos até aqui mencionados foram extraídos de entrevista, atualmente disponível no site A Garganta da Serpente, concedida a Rodrigo de Souza Leão quando o poeta contava 83 anos de idade. Sua poesia, de forte acentuação épica sempre causou curiosidade quanto às influências. Em outra entrevista, publicada na revista E, do SESC de São Paulo, declarou: “Não sei se é próprio falar de influências. Prefiro lembrar algumas referências. A primeira delas foi o caboclo Anselmo Vieira, cantador da feira de Ipueiras, com sua rabeca rouca, sua voz gemedeira, cantando quadras e sextilhas de sete sílabas, mourões de oito pés em quadrão, galopes-à-beira-mar em puros endecassílabos de Metastasio e assim por diante.” Entretanto, grande conhecedor de grego e latim, o poeta transcende os limites de seus sertões, conforme observa José Nêumanne Pinto, ao escrever sobre “Invenção do Mar”: “O primeiro épico contemporâneo brasileiro refere-se, originariamente, a Luís de Camões, cuja obra deu corpo definitivo e moderno ao vernáculo. Mas, ao nivelar Luiz Gonzaga e Homero, o poeta foi além: a dicção camoniana ganha cor e vida, ao ritmo do baião, que baila no bojo da viola dos repentistas e no verbo de fogo de profetas sertanejos – o Conselheiro, Padre Cícero e o negro forro Inácio da Catingueira no mesmo balaio –, um Brasil inteiro ainda por descobrir.”
A despeito de quaisquer controvérsias políticas ou biográficas, o que Gerardo nos legou foi sua poesia, sua intensa e necessária poesia. E é o poeta, contador de sua própria história, quem traça seu vaticínio: “Nos labirintos do saber e da cultura, varando o oco do mundo, por Europas, Ásias, Áfricas e Américas, peregrino de todas as vicissitudes, talvez eu possa dizer como Keats: ‘– Acho que meu nome constará depois da minha morte entre os poetas de meu tempo’. Se isto ocorrer, a uma coisa eu o devo – à fidelidade obstinada à minha terra, aos seus valores primitivos.” Este o rastro que deixa Apolo pelo vasto país de Gerardo Mello Mourão.
Em artigo no qual versava sobre a poesia e o papel do poeta, Gerardo Mello Mourão escreveu que “Cantar é ser – ensinava ainda o poeta nos Sonetos a Orfeu. / Ser é saber a sua própria história. / O poeta é o contador de sua própria história, da história de seu ser e de seu existir.” Fiel ao compromisso com a palavra, que considerava sagrada, a trajetória poética de Gerardo inclui verdadeiros monumentos literários calcados no cantar, no narrar, no existir em meio a um mundo moldado entre o lírico e o épico e impregnado da mítica existência humana ao longo de sua história e suas histórias. Nascido em janeiro de 1917, na cearense Ipueiras, e falecido em maio de 2007, no Rio de Janeiro, o poeta Gerardo legou-nos uma poesia que remonta a eras bem mais antigas, como “No País dos Mourões”, “Peripécia de Gerardo” e “Rastro de Apolo” (reunidos no volume “Os Peãs”), e “Invenção do Mar”. Acima de tudo, reafirmamos, seu compromisso era essencialmente com a poesia: “Publicar ou não publicar não é problema para um escritor de verdade. Vender livros também não. Baudelaire, em toda a sua vida, ganhou apenas 17 francos com seus livros. Kafka nunca teve mais de 40 leitores. Quanto a mim, escrevo apenas para comparecer com estes livros na mão, diante de Deus, no Dia do Juízo Final, no Vale de Josafá, que espero esteja para chegar. Acho até que tenho vendido demais e publicado demais. Deus vai me cobrar isto. Quando um jovem escritor está aflito para publicar um livro, desconfie do livro e do escritor. Começo por mim, que desconfio de meu primeiro livro. Depois, tome nota: um dos maiores poetas de nosso tempo e de todos os tempos, Kavafis, nunca editou um livro em vida, apenas distribuía, de vez em quando, quarenta ou cinquenta cópias de um de seus poemas a quarenta ou cinquenta pessoas que conhecia em diversos países da Europa.” Não se sabe o que terá dito Deus a Gerardo, mas agradeço-lhe por ter publicado demais, como afirmou, e desejo que a leitura de seus livros lhe sirva de prece para seus pecados editoriais.
A religiosidade permeava sua vivência, ele que declarou amar as alegrias do corpo e da alma, “mas estou afetado pela tristeza existencial (ou será ontológica?) do ser humano, pois sei, como Léon Bloy, que a maior desgraça que pode ocorrer ao ser humano é a desgraça de não ser santo. Eu não sou santo. Esta é a tristeza medular de minha vida. (...) estou vivo e fui maculado por quase todos os pecados mortais, os chamados pecados mortais. Quem quiser que os imagine.” Os depoimentos até aqui mencionados foram extraídos de entrevista, atualmente disponível no site A Garganta da Serpente, concedida a Rodrigo de Souza Leão quando o poeta contava 83 anos de idade. Sua poesia, de forte acentuação épica sempre causou curiosidade quanto às influências. Em outra entrevista, publicada na revista E, do SESC de São Paulo, declarou: “Não sei se é próprio falar de influências. Prefiro lembrar algumas referências. A primeira delas foi o caboclo Anselmo Vieira, cantador da feira de Ipueiras, com sua rabeca rouca, sua voz gemedeira, cantando quadras e sextilhas de sete sílabas, mourões de oito pés em quadrão, galopes-à-beira-mar em puros endecassílabos de Metastasio e assim por diante.” Entretanto, grande conhecedor de grego e latim, o poeta transcende os limites de seus sertões, conforme observa José Nêumanne Pinto, ao escrever sobre “Invenção do Mar”: “O primeiro épico contemporâneo brasileiro refere-se, originariamente, a Luís de Camões, cuja obra deu corpo definitivo e moderno ao vernáculo. Mas, ao nivelar Luiz Gonzaga e Homero, o poeta foi além: a dicção camoniana ganha cor e vida, ao ritmo do baião, que baila no bojo da viola dos repentistas e no verbo de fogo de profetas sertanejos – o Conselheiro, Padre Cícero e o negro forro Inácio da Catingueira no mesmo balaio –, um Brasil inteiro ainda por descobrir.”
A despeito de quaisquer controvérsias políticas ou biográficas, o que Gerardo nos legou foi sua poesia, sua intensa e necessária poesia. E é o poeta, contador de sua própria história, quem traça seu vaticínio: “Nos labirintos do saber e da cultura, varando o oco do mundo, por Europas, Ásias, Áfricas e Américas, peregrino de todas as vicissitudes, talvez eu possa dizer como Keats: ‘– Acho que meu nome constará depois da minha morte entre os poetas de meu tempo’. Se isto ocorrer, a uma coisa eu o devo – à fidelidade obstinada à minha terra, aos seus valores primitivos.” Este o rastro que deixa Apolo pelo vasto país de Gerardo Mello Mourão.
[publicado no jornal Diário do Povo, coluna Toda Palavra, Teresina, 21 de junho de 2011]
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