[Adriano Lobão Aragão]
RÉQUIEM
(H. Dobal)
Nestes verões jaz o homem
sobre a terra. E a dura terra
sob os pés lhe pesa. E na pele
curtida in vivo arde-lhe o sol
destes outubros. Arde ar
deste campo maior desta lonjura
onde entanguidos bois pastam a poeira.
E se tem alma não lhe arde o desespero
de ser dono de nada. Tão seco é o homem
nestes verões. E tão curtida é a vida,
tão revertida ao pó nesta paisagem
neste campo de cinza onde se plantam
em meio às obras-de-arte do DNOCS
o homem e outros bichos esquecidos.
O termo “réquiem”, oriundo do latim, “repouso”, refere-se à primeira palavra do intróito da missa dos mortos, ou à sua prece litúrgica. O poeta H. Dobal, entretanto, prepara um réquiem para os vivos; embora a própria terra (da qual deveria cultivar sua condição de sobrevivência) já lhe pese “sob os pés”. Constante em O Tempo Consequente (1966) trata-se do primeiro poema do livro em questão que alude ao tema mais peculiar de sua obra: o rústico sertanejo abandonado à sua própria indigência em meio a outros bichos, talvez abaixo do nível de sobrevivência, como se, ainda vivos, já se apresentassem mortos. O termo “outubros” poderia ser entendido como um indício de uma situação cíclica, ano a ano repetida, vivenciada sob o sol que curte o couro não do gado morto, mas do ser humano que, in vivo, tem sua pele, sua vida e seu ar entregues à ardência da sucessão dos dias áridos. Desenvolvidos em enjambement, chega a ser brutal o lirismo desconcertante dos versos “E se tem ama não lhe arde o desespero / de ser dono de nada. (...)”. Com certeza, uma das mais incisivas reflexões sobre a precária condição de vida(?) do homem sertanejo.
Entretanto, neste breve texto, procuraremos analisar, para além dos aspectos relacionados ao conteúdo sociológico, alguns elementos formais que, aliados ao valor social do poema, tornam a obra de Dobal ainda mais magnífica. Ao lado de aliterações (“sob os pés lhe pesa. E na pele”), assonâncias (“E se tem alma não lhe arde o desespero / sob os pés lhe pesa. E na pele”) e ecos (“nestes verões. E tão curtida é a vida, / tão revertida ao pó nesta paisagem”) Trata-se de um poema repleto de rimas internas, como ‘terra’ (verso 2) / ‘pesa’ (verso 3) ou o eco já mencionado, por exemplo. Não deixa de ser um recurso notório para um poeta que costuma não utilizar rimas. A quantidade de versos, 14, também é bastante curiosa, pois trata-se justamente da tradicional extensão de um soneto, e Dobal fez uso diversas vezes de sua forma inglesa, com os 14 versos reunidos em uma única estrofe. Neste caso, observa-se a partição em duas estrofes. Seria agora um soneto esfacelado, quebrado como o chão do sertão “onde entanguidos bois pastam a poeira”? Observa-se que a própria discursividade é “quebrada”, pelo recurso de enjambement, típico de Dobal, explorado à maestria neste poema. A suspensão do termo seguinte confere ao verso uma rudeza lírica, como o silêncio litúrgico ou o difícil falar sertanejo a que nos alude João Cabral de Melo Neto em O Sertanejo Falando, poema de A Educação pela Pedra.
Lembremos também que a palavra “réquiem” também se aplica à música, referindo-se à composição musical sobre o texto litúrgico da missa dos mortos, cujo intróito começa com as palavras latinas requiem aeternam (‘repouso eterno’). Configura-se assim um poema no qual o canto rústico, mas elaborado com os recursos estilísticos naquilo que lhe é essencial, é desfiado para o homem e outros bichos que se revertem ao pó. A dimensão litúrgica pode aqui ser retomada, conforme a intertextualidade bíblica: “Pois tu és pó e ao pó tornarás” (Gênesis, 3:19, conforme a Bíblia de Jerusalém).
A ironia dobalina, que será tão explorada em A Serra das Confusões, nos oferece uma de suas primeiras crias, estranhamente inserida na conclusão de poema tão grave (“em meio às obras-de-arte do DNOCS”). Por tratar-se de poema onde não há marcas de pessoalidade, não deve ser compreendida como alusão ao típico hábito brasileiro de ironizar a própria desgraça. Entretanto, a ironia não recai sobre o ‘homem’, mas sobre a ‘instituição’ (o Departamento Nacional de Obras Contra as Secas), que deveria ampará-lo. Este o aspecto que atenua a estranheza que a ironia confere ao poema, como uma incômoda nota dissonante nesta composição, neste réquiem. Eis que, num poeta como H. Dobal, nenhum recurso é desprovido maiores significações intrínsecas e, muitas vezes, repletas de polissemia. Neste árido “réquiem”, com certeza diversos leitores de Dobal colheram outras interpretações, pois se o campo de cinzas retratado é seco, sua poesia continua intensamente fértil.
[publicado no jornal Diário do Povo, coluna Toda Palavra, Teresina, 24 de maio de 2011]
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