A idade da pedra jovem



A idade da pedra jovem
Adriano Lobão Aragão


No dia 13 de novembro de 1985, dois integrantes do grupo Titãs, Tony Bellotto e Arnaldo Antunes, foram presos pela polícia. Tony foi liberado no dia seguinte, após pagar fiança, mas Arnaldo passou 26 dias de choro e reza na prisão, enquadrado como traficante e, depois, condenado a três anos de reclusão (por ter passado heroína para o guitarrista); Bellotto foi sentenciado em 6 meses, por porte de droga, pois a quantidade que possuía o classificava como usuário. Vários shows foram desmarcados por causa da repercussão negativa. Fragilizados, a banda quase encerra suas atividades. De qualquer forma, sem antecedentes criminais e com trabalho declarado, ambos cumpriram suas penas em liberdade. Em janeiro de 1986, o Jornal do Brasil publicaria um artigo de Arnaldo Antunes, no qual ele agradecia a todos que o apoiaram e não viram nesse fato uma transgressão “clicherizada” do mito do roqueiro marginal. Decididamente, não havia sido um bom final de ano para a banda.
Oriundos de diversas bandas efêmeras e projetos executados por alunos do Colégio Equipe e alguns amigos, os Titãs do Iê-Iê, como inicialmente se intitulavam, surgiram de uma absolutamente informal e caótica reunião durante um evento estudantil intitulado A Idade da Pedra Jovem. Curiosamente, alguns anos depois, a referência a um estado primitivo da humanidade seria um importante ingrediente para o amadurecimento artístico que a banda desenvolveu em seu terceiro LP, Cabeça Dinossauro, lançado em 1986.
Introduzidos no mercado fonográfico em 1984, através do hit Sonífera Ilha, faixa de abertura de Titãs, seu primeiro LP, garantiram, no ano seguinte, com Televisão e Insensível, a continuidade de seu sucesso nas rádios e as inevitáveis participações em programas de TV.  Popularizava-se uma imagem de roqueiros bregas, extravagantes, comerciais e pouco relevantes para o público que curtia um rock’n’roll ‘mais autêntico’. “Fomos taxados de brega, de se expor. Mas depois, quase todos que tinham essa postura começaram a fazer TV também. Então, acho que demos uma adiantada no tempo. Era genial estar ao lado do Jerry Adriani, sem preconceito”, avaliou Branco Mello, em entrevista concedida à revista Bizz. Arnaldo completa: “Essa utopia levou a gente a fazer muita cagada. Por exemplo, nos apresentamos toda semana no programa Barros Alencar achando que aquilo era legal. Em nível de construção de imagem foi muito ingênuo, mas em nível de trajetória, isso teve um valor. Queríamos ser tratados como lixo”.
Apesar da produção de Lulu Santos e de Insensível e Televisão tocarem bem nas rádios, seu segundo disco não conseguira a vendagem que banda e gravadora esperavam. A salada de estilos que a banda cultivou terminou gerando um produto ainda mais híbrido que seu primeiro disco, não se revelando muito palatável para o grande público, que se contentou com os dois hits radiofônicos. A prisão de Arnaldo e Tony, aliada à clara vontade de buscar uma unidade sonora mais pesada, influenciou na mudança estética que a banda tomaria em Cabeça Dinossauro, após a sonoridade confusa dos dois álbuns anteriores. “O espírito do disco era todo relacionado com o fato de Arnaldo ter sido preso, não dá para separar as coisas”, comentou na época o baterista Charles Gavin, que após visitar o amigo na prisão readaptou a letra de Homem Palestino, composição sua quando ainda estava na banda Ira!, e a transformou em Estado Violência [“...Homem em silêncio / homem na prisão / homem no escuro / futuro da nação...”].
Gravado e mixado praticamente em um único mês, Cabeça Dinossauro foi temperado com reggae, funk, punk, hardcore, pop, pastiche e o que mais aparecesse na mente de seus oito integrantes. Não apenas as letras estão colocadas de forma direta, objetiva, sem metáforas; a música está integrada a elas e vice-versa. Estava definida a construção de seu libelo contra os pilares da moderna ordem social: a polícia, o Estado, a Igreja, a família e o capitalismo. Suas faixas mais pareciam verbetes de um dicionário iconoclasta, finalizando com o desconcertante funk de O Quê.
O furioso álbum chegou às lojas na última semana de junho de 1986. Não teve boa aceitação imediata. Marcelo Fromer, um dos guitarristas da banda, chegou a afirmar que “teve um locutor da Rádio Cidade que odiou AAUU. Dizia que era coisa de débil mental”. Branco Mello revelou que mostrou o disco para o cantor Lobão “ele dizia que nós estávamos loucos, que era muito hermético”. Meses depois, essa “maluquice” já havia vendido mais de 380 mil cópias. Pela primeira vez, os Titãs estavam sendo um negócio muito lucrativo para a WEA.
Cabeça Dinossauro caracteriza-se como um disco que não revela esperanças nem soluções. Desenvolve tão somente a discursividade de negação do status quo. É caracterizado pela rejeição da ordem estabelecida sem definir o anseio por nenhuma outra. Da mesma maneira que suas letras, as apresentações ao vivo da época foram palco de violência. Durante o show de lançamento, o público destruiu o Teatro Carlos Gomes, em plena sincronia com a selvageria das letras.
A volta da democracia no país permitia que as bandas de rock falassem com maior liberdade, comparados aos compositores da MPB que, desde o final dos anos 60, sofreram a grande repressão do regime militar. Justamente por isso, é sintomático observar que no primeiro ano sem os militares no poder encontremos um trabalho com letras tão críticas e diretas, tão desprovidas de metáforas e outros recursos para driblar os olhares da Censura, ser consumido longe do circuito underground com tanta liberdade, apesar da proibição radiofônica de Bichos Escrotos (o que não impediu que música fosse amplamente difundida). A apropriação da ânsia anti-capitalista do pensamento subversivo esquerdista ganhava a mídia de forma ao mesmo tempo pungente e ingênua, romântica e realista; e, paradoxalmente, como investimento comercial viável, sobretudo nas vozes de Legião Urbana, Plebe Rude e Titãs. Um capítulo interessante da história do rock produzido no Brasil que torna a atual imagem da banda que protagonizou o brado de Cabeça Dinossauro uma pálida sombra do impacto que teve no distante ano de 1986.
 



[Publicado no jornal Diário do Povo, coluna Toda Palavra, Teresina, 29/03/2011]

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