[por Wanderson Lima]
A premência do olhar pedagógico
Quando se estuda o desenho animado no Brasil, estuda-se sobre uma ótica pedagógica e moral. A intenção é desmascarar as estratégias pedagógicas (ou anti-pedagógicas) ali contidas e decretar se se trata de uma diversão nociva ou transmissora de bons conselhos.
Embora haja essas duas possibilidades, a mais comum de ocorrer é a condenação, pois os desenhos “incitam o consumo”, “naturalizam a violência”, “transmitem uma visão machista de mundo”, “alienam”.
Há nessa postura muita coisa a se questionar. Em primeiro lugar, ela parte da pressuposição de que a comunicação simbólica é palavra de ordem. Assim, se eu assisto ao Pica-Pau martelando na cabeça do Leôncio, devo procurar um martelo em minha casa e acertar o cocuruto do meu pai. É a velha lenga-lenga que vem desde Platão, sem, entretanto, o mesmo refinamento: a a arte, como mímesis, é fonte de corrupção moral.
Em segundo lugar, essa forma de condenação não leva em conta a forma de recepção dos desenhos animados. Ela supõe que se elabora uma mensagem para zumbis, cujo feedback não pode deixar de ser um monossilábico sim. Ora, numa pesquisa ampla e envolvendo diversos países – A invenção do cotidiano – Michel de Certeau comprova à farta que espectadores “burlam” freqüentemente a forma como se espera que eles recebam as imagens dos media.
Em terceiro lugar, esquecem-se de que um desenho animado, antes de ser uma ferramenta pedagógica, é uma forma de arte. Isso implica dizer que entender um desenho sem passar por seus elementos propriamente artísticos (desenho, cor, som, tessitura simbólica) não é entendê-lo de verdade. É claro que quando eu assisto a um desenho em minha casa eu quero me entreter, matar o tempo e, portanto, não sou obrigado avaliá-lo artisticamente; mas se eu quero transformá-lo em objeto de pesquisa, tenho de mudar minha atitude, buscando entendê-lo em suas especificidades. Pedagogos, porém, falam de desenho, quadrinhos e cinema sem conhecimento profundo, histórico ou técnico, dessas artes. Tomemos um exemplo simples: o Pica-Pau, num episódio, toma o tronco de uma árvore enorme, põe numa máquina e do outro lado sai um mirrado cabo de vassoura. Forçando a caricatura, imagino que aí o pedagogo veria um exemplo de falta de consciência ecológica, talvez uma metáfora do irracionalismo do sujeito consumista. Se o pedagogo pudesse mudar esta cena, provavelmente faria o Pica-Pau ir a uma floresta, procurar um galho já derrubado e dali extrair seu cabo de vassoura. Teria ainda graça? Certamente não, pois o moralismo extremado paralisa a atividade criadora e mata o senso de humor.
O que escapa ao pedagogo – é preciso dizer que estou falando de todo aquele que queira ensinar, não do pedagogo stricto sensu – é a arte da animação. Por exemplo, que música de fundo está passando quando a cena acontece? A que gênero cinematográfico se filia o desenho? Qual o estilo do traço do desenhista? Estas e tantas outras perguntas possíveis de se fazer remetem para o que é específico do desenho e respondendo-as podemos compreender melhor o sentido sugerido naquela situação. Se eu disser, por exemplo, que a música de fundo produz uma atmosfera cômica, que é reforçada pelo estilo screwball de um pica-pau antropomórfico e de uma mítica bruxa com ar de solteirona, a coisa já começa a mudar: ali há ironia, o gênero “screwball comedy” (comédia maluca) se planta ali para nos fazer rir de absurdos ilógicos.
Estou dando exemplos com o Pica-Pau porque pretendo, neste texto, entendê-lo melhor: quem ele é, como evoluiu, o que diz, por que está morrendo. Se ele é apenas um sádico que só sabe dar maus exemplos, como explicar que desde a década de 1950 ele está no ar em nosso país? Como explicar o fato de eu, como muitos pais deste e de outros países, me sentar ao lado dos meus filhos para rirmos juntos de Woody Woodpecker?
O “perigo” dos desenhos animados
Lembro que, por volta de 2007, eu dava aulas na Educação Básica de uma escola pública de Teresina. E uma vez, numa reunião de pais e mestres, a vice-diretora fez um apelo aos pais de que não deixassem os filhos assistirem ao Pica-Pau, porque ali só se dava maus exemplos. Comentei ao colega ao lado, professor de Matemática, que achava aquele conselho um absurdo; ele me olhou com cara de reprovação e me lembrou que num episódio do Pica-Pau (“A vassoura da bruxa”), ele “estragava” uma árvore centenária para fazer um simples cabo de vassoura. “Uma total falta de consciência ecológica!” – completou o colega. Tentei argumentar com ele sobre o humor da cena; lembrei-lhe de que esse episódio provinha da década de 1940, quando o ecologismo não era moda – mas ele não quis ouvir. Em 2008, uma prima distante veio me visitar com seu filho, e ficou chocada ao saber que eu (“um educador”) deixava meu filho assistir ao Chaves. Essa minha prima, que era professora da Educação Infantil, argumentou que ali havia muitos maus exemplos, como crianças que não tomam banho e adultos que dão cascudos em menores.
Para quem acha que duas opiniões são particulares e não possuem respaldo acadêmico, eu remeto então ao livro O Pica-Pau: herói ou vilão? Representação Social da Criança e Reprodução da Ideologia Dominante (Loyola, 1985), dla pesquisadora Elza Dias Pacheco. Analisando o episódio “Auto-estrada fracassada” (“Freeway Fracas”), Pacheco afirma que naquele desenho se mostra “um mundo irreal onde as coisas simplesmente acontecem não se sabe como, quando e onde. Por outro lado, as contradições não são mostradas, pois enquanto o Pica-Pau lutou e venceu pelos seus direitos de posseiro, nós aqui não temos isso e não podemos reagir como ele. Então até que ponto tais conteúdos não geram uma forma de alienação?”.
Se alguém tem estômago para deglutir um angu mais caroçudo ainda, indico a obra Para Ler o Pato Donald: comunicação de massa e colonialismo (Paz e Terra, 1980), do chileno Ariel Dorfman e do belga Armand Mattelart. Eis o argumento dos estudiosos contra a deformação da infância levada a cabo por Mickey e sua turma:
[...] Disney só aproveita o “fundo natural” da criança naqueles elementos que lhe servem para inocentar o mundo dos adultos e mitificar o mundo da infância. Tudo aquilo que verdadeiramente pertence ao menino, sua confiança ilimitada e cega (e portanto, maleável), sua espontaneidade criativa (como demonstrou Piaget), sua incrível capacidade de amar sem reservas e sem condições, sua imaginação que desponta em torno e através dos objetos que o rodeiam, sua alegria que não nasce do interesse foram, em troca, mutilados deste fundo natural. Esconde-se sobre a aparência simpática, sob os animaizinhos com gosto de rosa, a lei da selva: a crueldade, a chantagem, a dureza, o aproveitamento das debilidades alheias, a inveja, o terror. A criança aprende a odiar socialmente ao não encontrar exemplos para encarnar seu próprio afeto natural.
Resulta então infundada e silenciosa a acusação de que atacar Disney é quebrar a harmonia familiar: é Disney o pior inimigo na colaboração natural entre pais e filhos.
Qualquer um que tenha lido Dostoievski, Freud ou Girard tem de segurar o riso diante de tal concepção beatífica da infância. Mas o que há de pior nesse moralismo ressentido não é isto, mas sim a vontade de domesticar o imaginário. Esse desejo de “controle do imaginário” – que o crítico literário Luiz Costa Lima considera uma marca do racionalismo moderno, no seu desejo de domesticar o discurso da arte – fica mais evidente noutro trecho, em que os autores interpretam a significação social da personagem Pato Donald:
[...] Donald é sentido como o representante autêntico do trabalhador contemporâneo. Enquanto este necessita de verdade do salário, para Donald é prescindível; enquanto o trabalhador procura desesperado, Donald encontra sem problemas; enquanto o primeiro produz e sofre como resultado da matéria que se lhe opõe e à exploração de que é objeto, Donald padece ilusoriamente o peso negativo do trabalho como aventura.
[...]
A aventura é o trabalho do reino das areias movediças que se crêem nuvens e que sugam para cima. Quando chega, por isso, o momento importante de receber o salário, ocorre a grande mistificação. O operário é burlado e leva de volta para casa uma parte do que ele realmente produziu: o patrão lhe rouba o resto. Donald, ao invés, por ser inútil todo o processo anterior, receba o que receber, é demais. Não tendo trazido riqueza, nem sequer tem direito de exigir participação. Tudo o que se entregar a este parasita é um favor que lhe é dispensado, e ele deve ser agradecido e não pedir mais. Só a providência pode entregar a graça da sobrevivência ao que não a merece. Como fazer uma greve? Como reivindicar aumentos de salários, se a norma que fixa este salário não existe?
Donald representa bastardamente todos os trabalhadores que devem imitar sua submissão, porque eles tampouco teriam colaborado na edificação deste mundo material. O pato não é a fantasia mas a fantasmagoria de que falava Marx: por detrás do “trabalho” de Donald é impossível que aflorem as bases que desdizem a mitologia laboral dos proprietários, isto é, a divisão entre o valor da força de trabalho e o trabalho criador de valores.
O que se depreende dessa arenga ressentida? Para dizer sinteticamente, um profundo desapontamento, quase uma raiva, por Donald não ser comunista. Se o fosse, denunciaria à classe proletária sua condição de sujeitos explorados, e assim cumpriria sua função pedagógica. Eis em última instância, em caricatura viva, onde nos leva a pedagogização do desenho animado.
Mas, entre marxistas, nem todas as análises se pautaram nessa vulgaridade. Walter Benjamin, no célebre ensaio de 1935 sobre a obra de arte e sua reprodutibilidade técnica, argumenta que “os procedimentos da câmara correspondem aos procedimentos graças aos quais a percepção coletiva do público se apropria dos modos de percepção individual do psicótico ou do sonhador”. O cinema, assim, coletiviza o sonho, e o faz menos por trazer à tela o mundo onírico (como fez Buñuel em Um Cão Andaluz) do que por extrair suas criações do imaginário coletivo. Para Benjamin, Mickey Mouse é o exemplo por excelência de personagem extraída do sonho coletivo. Mickey amortece as tensões produzidas pela tecnização da sociedade, produzindo uma hilaridade coletiva que oferece uma catarse que permite a eclosão saudável de psicoses de massa. Mickey e Chaplin –não só eles, mas principalmente eles – corroboram a função social que Benjamin considerava a mais importante do cinema: “criar um equilíbrio entre o homem e o aparelho”. Em outro ensaio, “Experiência e pobreza”, Benjamin continua a considerar Mickey sob a ótica de agente catártico, mas noutra linha argumentativa: toma o camundongo da Disney como uma resposta ao declínio da experiência na sociedade industrial. Sob os olhos de pessoas que levam uma vida desencantada e monótona, Mickey produz “milagres” que zombam da técnica em alguns momentos e, em outros, propõe uma harmonização entre ela e a natureza, entre o primitivismo e o conforto: Mickey é uma existência que se basta a si mesma, para quem a unidade é possível e a vida é simples.
Desdobro dessas reflexões de Benjamin duas hipóteses, uma que apenas anotarei de passagem e outra que quero tentar responder neste texto. A primeira é que Benjamin nos faz lembrar como a cultura de massa produz a mitologia de nosso tempo. E aqui surge a meu ver a grande bifurcação que marca a interpretação da significação social das animações, dos HQs e do cinema de gênero (Westerns, Terror, Gângster): a vertente que os vê como produção mitológica ou, pelo menos, como marcas da permanência do mito e da epopéia na sociedade secularizada e industrial; e a vertente que os vê como produção ideológica. A primeira vertente é defendida por autores como os mitólogos Mircea Eliade, Raphael Patai e Joseph Campbell, o escritor Jorge Luis Borges e o crítico literário russo Eleazar M. Meletínski, e é a que tomo por base. Raphael Patai, por exemplo, em sua obra “O mito e o homem moderno” dedica um simpático capítulo ao mito de Mickey, em que o compara a Héracles. A segunda vertente foi mostrada acima, com Pacheco e os autores de Para Ler o Pato Donald. Nem sempre são toscas as leituras dessa segunda vertente: basta lermos as refinadas interpretações dos “mitos burgueses” levada a cabo por Roland Barthes, em seu Mitologias, para darmos conta disso.
A segunda hipótese, que tentarei dar uma resposta ao final deste texto, é se o Pica-Pau pode ser visto, não como uma avezinha sádica e americanista que estimula a troca de cascudos entre crianças e produz alienação, mas como um mito ou arquétipo (a precisão terminológica aqui não é fundamental) de alguma necessidade infantil (e, quem sabe, adulta também). Uma espécie de personagem do sonho coletivo, produtor de uma catarse benéfica, como sugeria Benjamin acerca do Mickey Mouse.
Nascimento de um trickster
Não deve ser verdade, mas virou lenda. Era o ano de 1940. Walt Lantz iria passar a noite de núpcias com Grace Stafford (que mais tarde seria dubladora do Pica-Pau) num sossegado chalé à beira do lago Sherwood. Mas a paz dos dois durou pouco: a noite inteira, sobre o telhado do chalé, um incômodo pica-pau pôs-se a bicar. Pela manhã, viram que a ave deixara um monte de buraquinhos no teto. Desse episódio nasceu a inspiração para criar o Pica-Pau (Woody Woodpecker). A primeira aparição de Woodpecker deu-se num desenho de criação de Lantz, o Andy Panda, no episódio “Knock Knock”, de 1940, episódio que, curiosamente, teve o seu desfecho censurado no Brasil (talvez por satirizar a figura paterna e os dois psiquiatras que vão buscar o Pica-Pau e, não obstante, são tão loucos como ele). Ali já se definia o estilo sardônico e contraventor da pequena ave, cujas atitudes em geral são extremamente egocêntricas e o comportamento malandro e perverso não estão vinculados à marginalidade social.
Ao longo dos anos, o Pica-Pau sofreu tantas mudanças, no visual e no caráter, que quase somos tentados a dizer que há Pica-Paus. Estas mudanças deram-se no sentido de polir a avezinha de seu visual um tanto tosco (como o era sua personalidade) e de seu humor negro. Para sobreviver no mercado, a pequena ave teve sempre que negociar com a patrulha do politicamente correto, ainda que jamais tenha se domesticado completamente: a ironia e o sadismo nunca a abandonaram totalmente e isso ajuda bastante a compor a unidade de Woodpecker ao longo de seis décadas.
Grosso modo, é possível demarcar quatro fases distintas do Pica-Pau: uma surge no episódio primeiro, “Knock Knock” (1940), e se encerra em 1944, no episódio “Barbeiro de Sevilha” (The Barber of Sevilha), marco da segunda fase. A terceira vai deste episódio até 1951, quando o Pica-Pau passa a ser produzido pela Universal Pictures. O ano de 1999 traz a quarta fase do desenho, agora chamado o Novo Pica-Pau. É tentador dizer que, de uma fase a outra, o polimento visual acompanha pari passu o declínio da força irônica e perturbadora do desenho, mas, dizendo assim, desconsideraríamos episódios isolados altamente derrisivos mesmo nos anos 2000, com o surgimento do chamado Novo Pica-Pau. À primeira fase costuma-se chamar a fase do Pica-Pau “Biruta”; aqui o laivo de racionalidade da avezinha é mínimo: trata-se de um louco à solta, cujo único prazer é perturbar a paz do outro. A segunda fase é mais radical na mudança do visual do que na do caráter; surge nela o famoso antagonista Zeca Urubu (Buzz Buzzard), que, de tão crápula, dá-nos a impressão de que o Pica-Pau é do bem. Mas não é: o universo do Pica-Pau não é maniqueísta, e isso o faz menos previsível. A ambigüidade é o traço essencial da avezinha. Na terceira fase Pica-Pau ganha um bico um tanto mais arredondado e uma menor estatura, na tentativa (bem sucedida) de que as crianças se identificassem mais com o personagem radicaliza. A quarta fase acentua o antropomorfismo da ave, que também ganha uma personalidade mais calma; aqui um maniqueísmo se insinua fortemente, embora seja quebrado aqui e ali.
1ª Fase: o Pica-Pau "Biruta" (Tomando "uma" no episódio "Knock Knock") |
2ª Fase: um Pica-Pau mais polido (em "O barbeiro de Sevilha") |
3ª Fase, mais mirrado e infantil (em "A vassoura da Bruxa") |
4ª Fase: O novo Pica-Pau, topete mudado e postura mais calma |
O Pica-Pau surgiu no ponto alto e sob a inspiração da screwball comedy, ou “comédia maluca”. Trata-se de uma forma de comédia excêntrica, baseada em personagens pouco convencionais e diálogos rápidos, e que provavelmente encontrou seus mais bem aplicados cultores em Frank Capra e Howard Hawks, realizador de Levada da Breca (1938). Mas mais que um screwball (um excêntrico) Pica-Pau deriva de uma tradição universal, que é muito forte em seu país: a do trickster.
Para caracterizar o trickster e entender melhor Woody Woodpecker recorro ao elucidativo artigo “O herói trapaceiro: reflexões sobre a figura do trickster”, do antropólogo Renato da Silva Queiroz. Recolho do texto de Queiroz os seguintes apontamentos:
O termo trickster, adotado originalmente para nomear um restrito número de “heróis trapaceiros” presentes no repertório mítico de grupos indígenas norte-americanos, designa hoje, na literatura antropológica, uma pluralidade de personagens semelhantes, de que se tem notícia em diferentes culturas. [...] Em geral, o trickster é o herói embusteiro, ardiloso, cômico, pregador de peças, protagonista de façanhas que se situam, dependendo da narrativa, num passado mítico ou no tempo presente. A trajetória deste personagem é pautada pela sucessão de boas e más ações, ora atuando em benefício dos homens, ora prejudicando-os, despertando-lhes, por conseqüência, sentimentos de admiração e respeito, por um lado, e de indignação e temor, por outro. [...] o trickster (embusteiro, trapaceiro, ardiloso, astuto, desonesto, etc.) recebe esta designação em lembrança a uma antiga palavra francesa - triche (tricherie = trapaça, furto, engano, falcatrua, velhacaria). [...] Em algumas mitologias, o trickster assume feições humanas ou, então, vagamente antropomórficas. Noutras, é figurado como um animal - corvo, raposa, coiote, etc. Em diversas regiões africanas, por exemplo, a lebre e a hiena aparecem como suas encarnações zoomórficas [...]. De qualquer maneira, o trickster desempenha, segundo as narrativas, tanto o papel de vilão quanto o de herói, e, muitas vezes, o de herói civilizador - isto é, o de criador de condições indispensáveis ao florescimento da sociedade humana. Seus feitos positivos, todavia, são no mais das vezes involuntários, já que seu comportamento se orienta, em grande medida, por impulsos egoístas e anti-sociais. [...] As aventuras do trickster são marcadas, amiúde, pela malícia, pelo desafio à autoridade e por uma série de infrações às normas e aos costumes [...].
Dos mitos e contos folclóricos, o trickster, segundo pesquisadores como David Abrams e Brian Sutton-Smith, migrou para as histórias em quadrinhos e os desenhos animados. É o caso do Pica-Pau, cativante em sua cafajestice. Walter Lantz prolonga com Woodpecker uma tradição secular, presente tanto nos mitos indígenas americanos como na literatura de vários povos. Ora, se partirmos da idéia, amplamente aceita, de que os mitos podem, entre outras funções, representar anseios coletivos, e se aceitarmos a hipótese de que o Pica-Pau seja um trickster, é plausível ver nesta avezinha embusteira a projeção de um anseio coletivo. Me parece que tal anseio é a desforra do mais fraco sobre as pressões que o mundo lhe impõe, graças à sagacidade. O Pica-Pau é o Pedro Malazarte da cultura de massa.
Mas não façamos do Pica-Pau um Robin Hood ou um Ernesto Che. Se a redução do Pica-Pau à fonte de maus exemplos denota estreiteza de interpretação, o mesmo se diga de alguém que pretenda vê-lo como subversor da ordem, vingador dos oprimidos. Como lídimo trickster, Pica-Pau é um egocêntrico, desconhece o sentido da alteridade. Seu riso só conhece um sentido: a depreciação do outro. Em alguns episódios, a sua maldade é justificada pela fome; mas dificilmente ele se contentará em apenas em alimentar-se, se não atormentar alguém (nos episódios de busca por comida, a vítima do Pica-Pau costuma ser Wally Walrus, o Leôncio).
Por que a crianças gostam do Pica-Pau
A violência encenada no Pica-Pau, e em desenhos semelhantes, é pura burla, que se percebe pela dissonância que o conjunto da encenação transmite: a construção sonora nega o peso da ação mostrada; as cores, a expressão facial, as falas seguem a mesma atitude. Além disso, há uma renovação cíclica do corpo que inutiliza a violência: no episódio “Encontro com o destino” (Date with destiny, 2000), que foi bastante criticado, Pica-Pau arranca com um barbeador o nariz de Leôncio – que logo adiante aparecerá com o mesmo nariz. O melhor exemplo dessa invalidação da violência são as cenas em que aparecem os explosivos; os explosivos estão para certos desenhos animados (Pica-Pau, Pernalonga, Papa-Léguas e Coiote) como a metáfora para certos poemas surrealistas: rompem o encadeamento lógico da trama; criam um momento de intensidade cômica e emotiva.
Por ser um trickster, a simpatia que o público sente pelo Pica-Pau é sempre matizada: gosta-se dele, mas poucos são os que querem se identificar com ele. O Pica-Pau não quer ser (nem é) bonzinho, não se empenha em causas sociais. Ao contrário do trickster, o herói típico, certinho, unidimensional, não nutre ambigidade moral (é bom e pronto) e, assim, enseja uma aproximação maior: fundado em valores sancionados como positivos, ele pede que nós o imitemos. É sintomático a este respeito que muitas crianças queiram ser o Superman, comprem a fantasia do Superman, vivam a sensação de sê-lo, enquanto pouquíssimas crianças compram a fantasia do Pica-Pau (na verdade, não me lembro de ter visto nenhum menino fantasiado de Pica-Pau). É que o mundo do Superman está cindido entre forças opostas, o bem e o mal, e ele, encarnação suprema do bem, precisa defender aquela parcela de bondosos que não tem condições de se defender. Já o mundo do Pica-Pau é um mundo de trambiqueiros e agressivos: ele é perverso, desconhece o altruísmo, mas há alguém de fato bom, inteiramente bom, no universo do Pica-Pau? Esta breve comparação parece demonstrar que a paisagem moral das animações do Pica-Pau, por negar o maniqueísmo, é mais realista, mais pessimista, mais complexa de que a do Superman.
Apesar disso, não se trata nem dizer que o Pica-Pau é melhor nem mais instrutivo que Superman. A mente simplista de algumas pessoas quer nos fazer crer, como discuti linhas acima, que as crianças imitam o que vêem no desenho animado. Talvez imitem lances superficiais (um modelo de cabelo, um trejeito), mas absorver a postura moral, dificilmente. Se fosse assim, bastava domesticar os pequenos com animações inteiramente politicamente corretas (se isto existisse, eu certamente não estimularia meus filhos a verem!) e teríamos de sonhar com uma sociedade melhor. É neste ponto que o politicamente correto demonstra, como tem argumentado o filósofo Luiz Felipe Pondé, sua ponta fascista: na ânsia de tornar o mundo melhor, acaba por querer submeter tudo à sua fôrma. Ora, um mundo em que o Pica-Pau não trucidasse o pobre Leôncio ou que o Seu Madruga não desses cascudos no Chaves ou que o Bob Esponja perdesse seu nonsense e seus súbitos rompantes de humor negro seria um paisagem de paz forjada em laboratório, seria uma mentira à vida e suas impurezas.
Devo estar exagerando no abismo que crio entre arte e moral; pensando sensatamente vemos que de Hans Christian Andersen para cá muito do que se produziu sob a rubrica de “histórias para crianças” continha um elevado tom de moralidade, sem que a qualidade artística se prejudicasse com isto. Reconheço. Mas isso não diminui meu repúdio a toda crítica moral que queira transformar as narrativas infantis – sejam elas narradas oralmente, escritas, desenhadas ou filmadas – em sermão carola.
À parte essa intrincada questão, que rola há séculos, sobre o efeitos das obras artísticas no caráter das pessoas, vislumbro dois motivos da permanência do Pica-Pau (no Brasil, nós o assistimos desde a década de 50, na TV Tupi) no imaginário infantil. O primeiro é de uma obviedade ululante: o Pica-Pau é franzino, pequeno, não possui super-poderes e tem um jeito de criança; seus adversários são maiores e são, sem sombra de dúvidas, adultos. Mas o Pica-Pau, trickster consumado, engendra seus ardis e se sai bem. A criança ama a esperteza da avezinha porque todo garoto tem, também, um pouco de Pica-Pau, e pode desejar ser um Superman, mas é no fundo uma avezinha mandada por gigantes. Em inúmeras situações, nós também somos avezinhas, e mais indefesas, por nos faltar a astúcia e o ardil do Pica-Pau.
O segundo motivo também é evidente: a simplicidade da estrutura narrativa da animação. Como é comum em animações televisivas, narra-se praticamente a mesma história com pequenas variações; tais variações dependem, no caso do Pica-Pau, de quem é o antagonista: se é, por exemplo, o Leôncio, Andy Panda ou Clodoaldo, haverá grande possibilidade de o Pica-Pau ser o atormentador; se for Zé Jacaré (Gabby Gator), Meany Ranheta (Mrs. Meany) ou Zeca Urubu o Pica-Pau é provocado a reagir, e assim tendemos a identificá-lo como vítima, embora ele raras vezes o seja plenamente. Devido essa mudança de antagonista, e a oscilação entre episódios em que se dá bem e alguns que se dá mal, os desenhos do Pica-Pau são menos monótonos e previsíveis que Tom e Jerry e Papa-Léguas e Coiote.
O Pica-Pau não é inocente. Mas nem crianças nem marmanjos precisam de uma inocência que produza um falso (e perigoso) anteparo contra as impurezas da vida. A inocência saudável, aquela que é sinônimo de maravilhamento, essa pode ser encontrada amiúde no Pica-Pau, aliás em toda boa narrativa construída para crianças, desde as de estrutura elementar, como o Pica-Pau, até os mundos mais complexos da Alice de Carroll, do Pinocchio de Collodi e d’A Viagem de Chihiro de Miyazaki.
Não sou sociólogo, nem sou dado a pesquisas de campo. Mas, quando comecei a escrever este texto, fiz uma rápida enquete com as crianças que rodeiam meu cotidiano – filhos, sobrinhos, amigos dos filhos – perguntando por que eles gostavam do Pica-Pau. As respostas mais ouvidas foram: “Porque ele é engraçado”; “Porque ele é esperto”. Mas uma criança deu uma resposta inesperada para mim: “Porque tem bomba, é engraçado filme que tem bomba”. Linhas acima, pensando nesta fala, interpretei esta bomba como explosão metafórica. Algumas pessoas, porém, temem a explosão dessa bomba em seus lares.
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