Em busca do rock perdido

Cazuza e Lobão, "vida louca, vida..."
[Adriano Lobão Aragão]


Após mais de duas décadas, aquele janeiro de 1986 seria o primeiro sem o comando da ditadura militar. A censura vivia seu declínio, enquanto a música popular revelava uma discursividade mais direta, sem grandes floreios linguísticos, que há muito se encontrava predominante na produção artístico-musical brasileira. As metáforas e obscuridades que tanto adornavam e escondiam o discurso “subversivo” dos artistas dos anos 70, muitos agora “domesticados” pelo reconhecimento público e estabilidade financeira que o mainstream das grandes gravadoras lhes proporcionava, eram substituídos pela crítica mais direta. Poucos anos antes, o hedonismo cultural do final dos anos 70 e início dos 80 preconizava o abandono das causas públicas e a vivência dos prazeres individuais e despolitizados onde a regra era viver a alegria da disco music e a loucura das pistas de dança. Em meio a esses dancin’ days, havia muita coisa a ser gritada sem disfarces, da maneira mais clara e que não fosse tão somente um convite aos prazeres da noite. 

É certo que muito da produção que alia esse discurso desprovido de maiores recursos estéticos à crítica social direta, à contestação dos valores, já era realizada alguns anos antes, sobretudo pelos artistas que estavam atrelados à ideologia punk e não tinham maiores receios em desafiar a censura e uma sociedade que os ignorava. Entretanto, a massificação de trabalhos como Cabeça Dinossauro, Selvagem? e O Concreto Já Rachou consolidou uma libertação verbal que uma geração ávida de consumo e sufocada de repressão tanto ansiava. O primeiro Lp da Legião Urbana e músicas como "Inútil", do Ultraje a Rigor, já anunciavam essa reaproximação. Não importava se naquele momento músicas como "Bichos escrotos", dos Titãs, teriam sua radiodifusão e execução pública proibidas, o clima era de que cada vez mais se podia viver a liberdade de cantar o que bem se entendesse que haveria muitas pessoas para ouvir e cantar junto. O fim da censura nos meios de comunicação não demoraria a acontecer. Sonhava-se a concretização do que pregava o hino do Rock’in Rio através de uma aceitação dessa discussividade aberta e direta pelo grande público, bem como sua viabilidade econômica.
1986 foi um ano marcado por greves, discussões em torno da reforma agrária e de dois planos econômicos. O primeiro deles, o Plano Cruzado I, aumentou o poder aquisitivo, principalmente na classe assalariada. A indústria fonográfica vivenciou então um momento próspero. Compravam-se tantos discos que chegava a faltar matéria-prima para fabricação de vinil em virtude de uma incessante demanda, e uma grande parte desse montante provinha de discos de rock e, o mais surpreendente ainda, gravados por artistas brasileiros.

Desde o “Verão do rock”, em 1982, Blitz e Eduardo Dusek indicavam que o rock viria a ser a trilha sonora dos jovens brasileiros daqueles tempos. Em poucos anos, o palco estava armado para que diversas bandas aflorassem pelo país, dominando estações de rádios, casas de show como Noites Cariocas e Circo Voador (Rio) e Aeroanta (São Paulo), lojas de disco e toda uma geração.
Os Paralamas do Sucesso, cariocas que se conheceram em Brasília, surgiram em 1982 sob a influência direta do The Police. No mesmo ano, também no Rio de Janeiro, surgia o Barão Vermelho. Havia ainda os alegres e sentimentais Kid Abelha e Léo Jaime, e três ex-integrantes da extinta banda de rock progressivo Vímana desenvolveriam carreira-solo: Lulu Santos, Ritchie e Lobão, que também havia participado da Blitz, mas como baterista.
A música punk influenciou diversas outras bandas, sobretudo em São Paulo, Brasília e Rio Grande do Sul, sem que necessariamente pudessem ser classificadas como autênticos representantes dessa estética (ou anti-estética, como preferir). Embrionada pelo Aborto Elétrico e radicada em Brasília, a Legião Urbana, liderada por Renato Russo, surgia em 82, fortemente influenciada pelo The Smiths. Entre outras bandas de origem semelhante, as que mantinham maiores concessões pop destacaram-se em âmbito nacional, como o Capital Inicial e a Plebe Rude, que apresentava um forte discurso político-contestatório. Na capital paulista, o Ira! firmou-se com sua releitura mood e os Titãs conseguiram pleno reconhecimento de público e crítica a partir do álbum de 1986, Cabeça Dinossauro. Pouco antes, os debochados do Ultraje a Rigor já haviam “assaltado” as FMs, bem como o new wave da Metrô e o fenômeno RPM, com seus mais de dois milhões de discos vendidos. No Rio Grande do Sul, Engenheiros do Hawaii e Nenhum de Nós conseguiram chegar ao sucesso nacional. Houve ainda os baianos Camisa de Vênus, e os metaleiros mineiros do Sepultura, que foi uma das poucas bandas brasileiras a fazer sucesso no exterior. Por quase uma década, a guitarra elétrica dominava uma nação e reinventou a juventude dos anos 80.


[Publicado no jornal Diário do Povo, coluna Toda Palavra, Teresina, 25 de janeiro de 2011]

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