O engenho musical de Da Costa e Silva





A obra de Da Costa e Silva, desde o seu preâmbulo, “Sangue” (1908), se nos mostra como um rigoroso exercício melopoético (música e palavra). Isso porque, em grande parte de sua poesia, os aspectos fanopaicos e cognitivos parecem estar sobrepujados pelos aspectos musicais. Em outros termos: a literatura dacostiana – inegavelmente influenciada por vertentes simbolistas – procura se pautar em uma estética na qual os sons são a base material do fazer artístico. As palavras, desse modo, ligam-se umas às outras mais pela questão da afinidade fônica do que mesmo pelo sentido que procuram expressar. As construções frasais do texto são pensadas predominantemente com intuito de se atingir a precisão horizontal da música tonal: um arco melódico narrativo no qual se observa a alternância entre momentos de tensão e repouso.

Vejamos, em uma breve análisea)literário em um , dois importantes poemas do autor:


SAUDADE

Saudade! Olhar de minha mãe rezando
E o pranto lento deslizando em fio...
Saudade! Amor da minha terra... O rio
cantigas de águas claras soluçando.

Noites de junho... O caburé com frio,
ao luar, sobre o arvoredo, piando, piando...
E, ao vento, as folhas lívidas cantando
a saudade imortal de um sol de estio.

Saudade! Asa de Dor do Pensamento
Gemidos vãos de canaviais ao vento...
As mortalhas de névoa sobre a serra.

Saudade! O Parnaíba - velho monge
as barbas brancas alongando... E ao longe,
o mugido dos bois da minha terra...


A MOENDA

Na remansosa paz da rústica fazenda,
à luz quente do sol e à fria luz do luar,
vive, como a expiar uma culpa tremenda,
o engenho de madeira a gemer e a chorar.
Ringe e range, rouquenha, a rígida moenda;
e, ringindo e rangendo, a cana a triturar,
parece que tem alma, advinha e desvenda
a ruína, a dor, o mal que vai, talvez, causar...
Movida pelos bois tardos e sonolentos
geme, como a exprimir, em doridos lamentos,
que as desgraças por vir, sabe-as todas de cor.
Ai, dos teus tristes ais, ai, moenda arrependida
- Álcool! para esquecer os tormentos da vida
- e cavar, sabe Deus, um tormento maior!


            O poema ormpço, “Saudade”, por exemplo, agrupa um conjunto de recursos fonoestilísticos e musicais de uma maneira virtuosística. Aliás, “virtuosismo melopoético” é uma expressão que se coaduna muito bem ao universo da poesia dacostiana. Algumas vezes, o poeta chega mesmo a exagerar (como na seção Poemas da fauna, em “Zodíaco”), transformando um recurso literário em uma espécie de truque lingüístico. O poema “Saudade” expressa – através de uma série de imagens dispostas de maneira quase que cinematográfica e num um ritmo lento, arrastado – uma intensa melancolia, este sentimento tão peculiar à nossa cultura de tradição lusitana. Para tanto, o poeta se utiliza de várias pausas, reticências, suspensões, orações gerundiais, assonâncias – métodos que tornam os versos largos (no sentido musical do termo), como as frases musicais de duração longa. E de fato – como nos mostra os estudos musicológicos da canção, em especial as investigações na área da semiótica – as frases musicais de durações longas geralmente estão associadas à melancolia, à tristeza e à solidão. Um distanciamento entre sujeito e objeto.

            O que realmente nos impressiona nesse soneto é o equilíbrio entre imagem/ som/ sentido que Da Costa e Silva conseguiu atingir. Não raro, observamos que o sentimento de melancolia e saudade é tratado de maneira piegas pela nossa poesia e, mais ainda, pela nossa música popular. Da Costa e Silva conseguiu expressar a saudade pela sua terra natal de maneira extremamente rica e balanceada: as imagens soltas (o olhar de minha mãe rezando, o caburé com frio, as folhas lívidas ao vento, as mortalhas de névoa sobre a serra) se mesclam com o ritmo expressivo e com a sonoridade medida e pesada de cada palavra. A própria musicalidade do poema e a sugestão de suas imagens já nos impregnam de melancolia e de sentimento de perda e distanciamento das coisas. Em uma leitura em voz alta desse poema é possível ouvirmos os sons do vento (gemidos vãos de canaviais ao vento), sentirmos o fluxo ininterrupto de um rio (cantigas de águas claras soluçando), sentirmos a dureza de um sentimento pela própria “dureza sonora” do verso (Saudade! asa de dor do pensamento). Todas estas colocações parecem corroborar o conceito de Paul Valéry, para quem a poesia é “a hesitação entre som e sentido”.


Em “A Moenda”, o primeiro recurso que nos chama a atenção é a repetição insistente da consoante alveolar r. Esta consoante cria um efeito fônico muito sugestivo, já que está presente em grande parte dos versos. O ruído simboliza a sonoridade ríspida da moenda, o seu “choro” e “gemido”, como nos diz o poeta. O efeito onomatopaico fica mais claro na segunda estrofe:

Ringe e range, rouquenha, a rígida moenda;
e, ringindo e rangendo, a cana a triturar

O ritmo fônico deste verso é gerado pela sonoridade constante da consoante vibrante e da fricativa g. Em relação ao uso das vogais, observamos que a seqüência das nasais imprime no texto um ritmo arrastado e uma sonoridade mais fechada. Vejamos também que a pontuação (vírgula e ponto-e-vírgula) contribui mais ainda para engendrar a sensação de lentidão do poema. A cadência rítmica criada sugere o próprio movimento de uma moenda, “movida pelos bois tardos e sonolentos”. “A Moenda” é um poema cujo ritmo e sonoridade, a todo o momento, nos proporcionam uma sensação de dureza, de cansaço. Os adjetivos e substantivos escolhidos pelo poeta estão intimamente concatenados com os elementos estruturais: tristes, arrependida, sonolentos, doridos lamentos, ruína, dor, desgraça. Observamos que o escritor procura harmonizar o ritmo fônico com a semântica, o que dá unidade ao texto poético.

Da Costa e Silva nos apresenta – através de uma linguagem rica em efeitos onomatopaicos, assonâncias e aliterações, mudanças rítmicas repletas de sutilezas, modulações melódicas de grande expressividade – uma moenda personificada, que geme, chora e parece ter alma. Um engenho de madeira carregado de ruídos que compõem uma estranha música. Esta musicalidade que simboliza a própria “coisa representada” no poema, como é o caso de “A Moenda”, dos poemas da Fauna e de “Saudade”, é recorrente na obra do escritor piauiense.
           
Os estudos de literatura piauiense geralmente não enfatizam as camadas estruturais e fônicas da obra do poeta de Amarante. Debruça-se muito mais em análises insipientes de poemas de menor envergadura como “Amarante”, do que mesmo em suas experiências melopoéticas mais bem realizadas artisticamente. Muito mais que “um poeta telúrico que canta as belezas de sua terra natal”, Da Costa e Silva é um arquiteto do verso, um engenheiro que experimenta incansavelmente as potencialidades musicais da palavra.



Alfredo Werney é músico, pesquisador e arte-educador. Autor do livro “Reencantamento do mundo: notas sobre cinema”.

Comentários

alfredo disse…
esse espaço sim. é democrático. obrigado adriano