TODA PALAVRA
Isso é samba sim, Sinhô
Adriano Lobão Aragão
poeta e professor / www.adrianolobao.com.br
“Malandros, soldados, marinheiros, donas de rendez-vous baratos, meretrizes, choferes, macumbeiros, todos os sambistas de fama, os pretinhos dos choros dos botequins das ruas Júlio do Carmo e Benedito Hipólito, mulheres dos morros, baianas de tabuleiros, vendedores de modinhas...”, assim, em crônica publicada no primeiro número da Revista da Música Popular, em outubro de 1954, Manuel Bandeira descreveria as inevitáveis presenças no enterro de Sinhô, o auto-denominado Rei do Samba, falecido em 04 de agosto de 1930. Em 1937, nas Crônicas da Província do Brasil, Bandeira escrevera “o que há de mais povo e de mais carioca tinha em Sinhô a sua personificação mais típica, mais genuína e mais profunda”. O notório compositor, admirado por escritores como Oswald de Andrade e Bandeira, nascido José Barbosa da Silva, em 1888, adepto do candomblé, da boêmia e das polêmicas, autor de obras fundamentais para o surgimento e desenvolvimento do samba, como “Gosto que enrosco”, “Ora vejam só” e “Jura”, seu maior sucesso, após uma vida, nas favelas do Rio, na Cidade Nova, onde conheceu a miséria e o apreço popular, numa época em que quase nada se ganhava com música no Brasil, dedicou seu talento a um gênero ainda em gênese que mudaria a história cultural de um país. Nas palavras do historiador Jairo Severiano, “foi ouvindo as músicas de Sinhô que o Brasil aprendeu a gostar de samba”.
Edigar de Alencar, biógrafo de Sinhô, chegou a catalogar 174 canções, número bastante expressivo, se considerarmos que foram compostas em apenas 13 anos. João Máximo, em texto para a coleção Raízes da Música Popular Brasileira, lançada em 2010 pelo jornal Folha de São Paulo, assim divide os sambas amaxixados de Sinhô: a) Temas afro-brasileiros, incluindo referências à Bahia; b) As demais composições, carnavalescas ou não, sambas ou não, compreendendo crônica, crítica, sátira, polêmica, mulher. As polêmicas, aliás, eram parte intrínseca não apenas de suas letras, mas também de sua vida. Rui Barbosa, por exemplo, chegou a ser alvo de sua verve satírica através de “Fala meu louro”; e Pixinguinha, Donga e China em “Três macacos no beco”. E quando Heitor dos Prazeres cobrava de Sinhô os direitos autorais de uma composição sua que Sinhô havia tomado posse (como, ao que parece, Donga havia se apropriado da composição coletiva de "Pelo Telefone"), o controverso compositor respondeu que “samba é como passarinho. É de quem pegar.” E vale lembrar que, ao carimbar e assinar as edições das partituras de suas músicas, coube a Sinhô a primazia de preocupar-se com direitos autorais. Mas o fato é que, entre o maxixe, o samba de Sinhô, o choro de Pixinguinha e o samba do Estácio, não seria possível, desde sua origem, estabelecer o que realmente fosse um samba. Em relação à suas obras, Sinhô podia chamá-las do que fosse, samba-toada, samba-choro, samba democrático, samba maioral, samba isso, samba aquilo, mas sempre seria, para ele, indiscutivelmente samba.
Há quem diga que o samba de Sinhô, com sua forte ligação com o maxixe, tenha surgido e morrido com o compositor, e que a disseminação do que passou a ser entendido como samba deveu-se aos compositores do Estácio. Tal afirmação é bastante coerente, mas a questão do que seria ou não, essencialmente, um samba, remonta à sua própria origem, e nem mesmo os compositores das primeiras décadas chegavam a um mínimo de consenso, apresentando, em suas discussões, exemplos absolutamente contraditórios. Em outras palavras, os limites de um samba jamais seriam mapeados, nem no passado nem no futuro. Ao longo do século XX, até os dias atuais, o samba, gênero mestiço por natureza, estendeu seus compassos por diversas veredas, do samba-jazz ao samba-rock, do samba-reggae ao sambalanço. O baiano Caymmi lembrava que “o samba da minha terra deixa a gente mole / quando se canta todo mundo bole”. Outro baiano, João Gilberto, declarava que não fazia bossa nova, fazia samba. E Jorge Ben, antes de ser Benjor, batizou seu primeiro disco de Samba Esquema Novo, e, três décadas depois, o Mundo Livre S./A. estreou com o seu Samba Esquema Noise. O mineiro João Bosco, juntamente com Aldir Blanc, reviveu o samba de breque nos anos 70. O pernambucano Chico Sciense perguntava “você samba de que lado, de que lado você vai sambar?”. De volta ao Rio de Janeiro, Marcelo D2, em sua busca pela batida perfeita, relembrava “a maldição do samba”, e Paulinho Moska avisa que “tem Moska no samba”, projeto cujo título é mais que auto-explicativo. A lista ainda seria infinitamente maior, incluindo Marisa Monte, Jards Macalé, Leila Pinheiro e diversos outros artistas que nunca seriam vistos como sambistas, mas seguem pelo caminho com seus passos de bamba. E quando Marcelo Camelo abre o terceiro disco dos Los Hermanos, Ventura, perguntado “quem se atreve a me dizer do que é feito o samba?”, talvez Sinhô pudesse ter a resposta. E não aceitaria contestação.
[Publicado no jornal Diário do Povo, Teresina, 21 de setembro de 2010]
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