[por Ranieri Ribas]
Publicado originalmente na revista dEsEnrEdoS, número 01, julho 2009
Qual seria a origem desta degenerescência que tento apontar: o unicismo da experiência criativa, a fuga pela formalidade imanente, a ausência de inflexão pública, o narcisismo ególatra dos temas, a feudalização autofágica da comunidade fragmentada, a politização da eleição dos melhores?
Não tenho uma resposta plausível para este circo de horrores. Na minha experiência de leitura, que não é das mais opulentas, vejo duas origens: a primeira, já mencionada, fora a abolição da experiência como nascedouro da força poética. A segunda é de natureza mais técnica. Vejamos.
O corolário poético mais radical cujo desdobramento se inicia a partir da Semana de 1922 foi, sem sombra de dúvida, a exoneração das formas fixas do verso. Este acontecimento, creio, resultou num dos transvios mais caros à poesia brasileira no século XX: o desprezo às técnicas de versificação e ao estudo rigoroso das formas de metrificação clássica e moderna (vêm-nos à memória nomes como António Feliciano de Castilho e Olavo Bilac). O modernismo brasileiro confundiu – para usarmos a precisa distinção de Ezra Pound – o verso livre com o verso polimétrico. As formas fixas consolidadas pelos antigos e os extensos tratados de versificação foram arrogantemente taxados como obsoletos, como se uma geração pudesse anular uma sabedoria acumulada há mais de dois mil anos. Nós sabemos – sejamos justos – que os poetas modernos, eles próprios ao pregarem a abolição da marcação métrica rigorosa, agiam como iconoclastas, como jovens intempestivos, o que era típico de toda vanguarda. Porém, essa recusa se esgotava enquanto manifestação do discurso de ruptura: tratava-se de mera pregação retórica. Mestres como Drummond e Bandeira tinham um domínio técnico da versificação igual ou maior a um Olavo Bilac ou um Gonçalves Dias. Afinal, para exercitar com fluência as faturas polimétricas era imprescindível dominar a forma ortodoxa do verso. O artista só poderia ser revolucionário pela consciência, não pela ignorância.
A pedagogia poética oficinial do concretismo, à Pound, com seu amplo projeto de traduzir um cânone específico – dando a este cânone uma interpretação muito particular, teleológica, como se os autores eleitos fossem todos involuntariamente precursores dos preceitos da poética da concretude – ainda remediou o problema, uma vez que havia ali uma preocupação estruturalista com a marcação fônica e rítmica do verso. Não obstante, a estética concreta (e não a pedagogia poética do concretismo, o que é diferente) aprofundou o problema da ignorância voluntária em questões de versificação na poesia brasileira.
O programa poético dos Campos guiava-se pela filosofia da linguagem de Ernst Fenollosa e era, por isso, uma tentativa de constituir uma linguagem ideogrâmica com caracteres ocidentais. A linguagem ideogrâmica, segundo o sinólogo, era uma linguagem analógica em que o signo remeteria imediatamente ao objeto, uma vez que o próprio signo seria, neste caso, uma sobreposição de imagens-objetos. Esta seria uma linguagem que, diferentemente da linguagem aristotélica ocidental, não remeteria a mediaticidade dos sinônimos ou a alguma articulação onosmática.
O concretismo concluiu que a solução desta questão – a busca de uma linguagem analógica ideogramática através de caracteres ocidentais – fosse uma aproximação com as artes plásticas e com a visualidade da linguagem publicitária. O resultado foram poemas com Lixo/Luxo, Ovo/Novelo, Negócio, Cristal/Fome, etc. Esta solução, devido a sua debilidade estética, demandou enormes esforços de seus inventores no sentido de explicar o fundamento verbivocovisual desses experimentos. Aí vieram falácias retóricas de toda ordem, a mais usada fora a acusação da chamada “morte do verso"[13]. A geração que se seguiu ao concretismo, a chamada geração 60, para usarmos a expressão de Pedro Lyra, fora a geração do épico. Havia um diálogo com o concretismo, mas muitos poetas buscavam saídas e faturas isoladamente. Vide Marcus Accioly, vide Mário Faustino.
Até aqui, poderíamos aproveitar a boa pedagogia concretista e suas excelentes traduções de poetas fundamentais então desconhecidos no Brasil. Estaríamos no caminho mais prudente. Entretanto, estas faturas concretistas se difundiram. E muitos dos poetas que a leram não atentaram para o significado radical da busca que ali se encerrava. O resultado é que poemas com lixo/luxo passaram a ser reproduzidos como trocadilho, malapropismo, errata.
Chegamos ao princípio do fim: a geração 70. O setentismo foi um oswaldianismo mal-compreendido, um concretismo sem substância. O setentismo levou a mixórdia entre letra de música e poesia. Um movimento típico da herança da cultura de massa pós-68. Uma mistura de atitude Rimbaud com chulismos à Walt Whitmann. Se estivessem em outro momento histórico, os setentistas não teriam canais de vazão para expor suas diatribes versificadas. Mas eles apareceram numa época em que o mimeógrafo e a fotocópia ofereciam ampla difusão de seus escritos. Seus adeptos tornaram-se professores de literatura, e isso gerou uma rede de autores sem o menor domínio técnico do verso; desprezavam a leitura dos clássicos, queriam apenas agir num país governado por um regime militar autoritário. O protesto virou palavra de ordem. O verso foi seu veículo privilegiado de propagação. O programa estético tornou-se secundário. Importava a ação político-poética.
A politização como bandeira ideológica, o trocadilho como vício de linguagem. Esta era a insígnia da geração setenta. Mas como uma geração politizada como essa pôde ser sucedida por outra politicamente apática? Uma vez que o inimigo tenha sido derrotado – a ditadura – é natural que tenha ocorrido um vácuo de razões para justificar a escrita da poesia. Algo análogo ao que afirmara Adorno acerca da poesia de Celan: “depois de Auschwitz, é bárbaro escrever um poema”. Nesta aporia, indagaria Augusto de Campos, como um mote para a geração que então nascia ao fim da ditadura: como escrever um poema depois de tudo, pós-tudo?
__________________
notas
[13] A réplica de Siscar a Dohlnikoff a este respeito é magnífica. Ver em revistamododeusar.blogspot.com/2009/04/poetas-beira-de-uma-crise-de-versos-por.html
Publicado originalmente na revista dEsEnrEdoS, número 01, julho 2009
Qual seria a origem desta degenerescência que tento apontar: o unicismo da experiência criativa, a fuga pela formalidade imanente, a ausência de inflexão pública, o narcisismo ególatra dos temas, a feudalização autofágica da comunidade fragmentada, a politização da eleição dos melhores?
Não tenho uma resposta plausível para este circo de horrores. Na minha experiência de leitura, que não é das mais opulentas, vejo duas origens: a primeira, já mencionada, fora a abolição da experiência como nascedouro da força poética. A segunda é de natureza mais técnica. Vejamos.
O corolário poético mais radical cujo desdobramento se inicia a partir da Semana de 1922 foi, sem sombra de dúvida, a exoneração das formas fixas do verso. Este acontecimento, creio, resultou num dos transvios mais caros à poesia brasileira no século XX: o desprezo às técnicas de versificação e ao estudo rigoroso das formas de metrificação clássica e moderna (vêm-nos à memória nomes como António Feliciano de Castilho e Olavo Bilac). O modernismo brasileiro confundiu – para usarmos a precisa distinção de Ezra Pound – o verso livre com o verso polimétrico. As formas fixas consolidadas pelos antigos e os extensos tratados de versificação foram arrogantemente taxados como obsoletos, como se uma geração pudesse anular uma sabedoria acumulada há mais de dois mil anos. Nós sabemos – sejamos justos – que os poetas modernos, eles próprios ao pregarem a abolição da marcação métrica rigorosa, agiam como iconoclastas, como jovens intempestivos, o que era típico de toda vanguarda. Porém, essa recusa se esgotava enquanto manifestação do discurso de ruptura: tratava-se de mera pregação retórica. Mestres como Drummond e Bandeira tinham um domínio técnico da versificação igual ou maior a um Olavo Bilac ou um Gonçalves Dias. Afinal, para exercitar com fluência as faturas polimétricas era imprescindível dominar a forma ortodoxa do verso. O artista só poderia ser revolucionário pela consciência, não pela ignorância.
A pedagogia poética oficinial do concretismo, à Pound, com seu amplo projeto de traduzir um cânone específico – dando a este cânone uma interpretação muito particular, teleológica, como se os autores eleitos fossem todos involuntariamente precursores dos preceitos da poética da concretude – ainda remediou o problema, uma vez que havia ali uma preocupação estruturalista com a marcação fônica e rítmica do verso. Não obstante, a estética concreta (e não a pedagogia poética do concretismo, o que é diferente) aprofundou o problema da ignorância voluntária em questões de versificação na poesia brasileira.
O programa poético dos Campos guiava-se pela filosofia da linguagem de Ernst Fenollosa e era, por isso, uma tentativa de constituir uma linguagem ideogrâmica com caracteres ocidentais. A linguagem ideogrâmica, segundo o sinólogo, era uma linguagem analógica em que o signo remeteria imediatamente ao objeto, uma vez que o próprio signo seria, neste caso, uma sobreposição de imagens-objetos. Esta seria uma linguagem que, diferentemente da linguagem aristotélica ocidental, não remeteria a mediaticidade dos sinônimos ou a alguma articulação onosmática.
O concretismo concluiu que a solução desta questão – a busca de uma linguagem analógica ideogramática através de caracteres ocidentais – fosse uma aproximação com as artes plásticas e com a visualidade da linguagem publicitária. O resultado foram poemas com Lixo/Luxo, Ovo/Novelo, Negócio, Cristal/Fome, etc. Esta solução, devido a sua debilidade estética, demandou enormes esforços de seus inventores no sentido de explicar o fundamento verbivocovisual desses experimentos. Aí vieram falácias retóricas de toda ordem, a mais usada fora a acusação da chamada “morte do verso"[13]. A geração que se seguiu ao concretismo, a chamada geração 60, para usarmos a expressão de Pedro Lyra, fora a geração do épico. Havia um diálogo com o concretismo, mas muitos poetas buscavam saídas e faturas isoladamente. Vide Marcus Accioly, vide Mário Faustino.
Até aqui, poderíamos aproveitar a boa pedagogia concretista e suas excelentes traduções de poetas fundamentais então desconhecidos no Brasil. Estaríamos no caminho mais prudente. Entretanto, estas faturas concretistas se difundiram. E muitos dos poetas que a leram não atentaram para o significado radical da busca que ali se encerrava. O resultado é que poemas com lixo/luxo passaram a ser reproduzidos como trocadilho, malapropismo, errata.
Chegamos ao princípio do fim: a geração 70. O setentismo foi um oswaldianismo mal-compreendido, um concretismo sem substância. O setentismo levou a mixórdia entre letra de música e poesia. Um movimento típico da herança da cultura de massa pós-68. Uma mistura de atitude Rimbaud com chulismos à Walt Whitmann. Se estivessem em outro momento histórico, os setentistas não teriam canais de vazão para expor suas diatribes versificadas. Mas eles apareceram numa época em que o mimeógrafo e a fotocópia ofereciam ampla difusão de seus escritos. Seus adeptos tornaram-se professores de literatura, e isso gerou uma rede de autores sem o menor domínio técnico do verso; desprezavam a leitura dos clássicos, queriam apenas agir num país governado por um regime militar autoritário. O protesto virou palavra de ordem. O verso foi seu veículo privilegiado de propagação. O programa estético tornou-se secundário. Importava a ação político-poética.
A politização como bandeira ideológica, o trocadilho como vício de linguagem. Esta era a insígnia da geração setenta. Mas como uma geração politizada como essa pôde ser sucedida por outra politicamente apática? Uma vez que o inimigo tenha sido derrotado – a ditadura – é natural que tenha ocorrido um vácuo de razões para justificar a escrita da poesia. Algo análogo ao que afirmara Adorno acerca da poesia de Celan: “depois de Auschwitz, é bárbaro escrever um poema”. Nesta aporia, indagaria Augusto de Campos, como um mote para a geração que então nascia ao fim da ditadura: como escrever um poema depois de tudo, pós-tudo?
__________________
notas
[13] A réplica de Siscar a Dohlnikoff a este respeito é magnífica. Ver em revistamododeusar.blogspot.com/2009/04/poetas-beira-de-uma-crise-de-versos-por.html
Comentários