[por Ranieri Ribas]
Publicado originalmente na revista dEsEnrEdoS, número 01, julho 2009
A poesia brasileira contemporânea está em crise, dizem alguns. Entretanto, basta darmos uma rápida olhada nos canais midiáticos de veiculação que constataremos um mercado afluente de publicações, editoras, revistas literárias, blogs, sites, jornais e encontros poéticos. Este seria um indício numérico da opulência produtiva de que desfruta a poesia brasileira hodierna. Sabemos que dentre os gêneros de escrita a poesia ocupa uma desconfortável posição anti-comercial. E não é por acaso. Não se formam bons leitores do gênero com um Fiat Lux. A educação estética para compreensão substantiva e formal da palavra poética demanda muito tempo, muito estudo e, até mesmo, certa experiência de vida. A leitura de um poema não se dá pela busca da transitividade do signo, pois que o signo mesmo é seu artefato, e a transição, quando ocorre, não obedece às regras do discurso ordinário, ela se dá pelo deslocamento da palavra em relação ao status quo vernacular. A fruição da poesia é, assim, uma modalidade específica de leitura. Talvez tivesse razão Paul Valéry ao afirmar que, desde o advento do simbolismo francês, o gênero poético passou a se afirmar pela “abolição do sufrágio do número”. Antes ainda, com Rimbaud, já se iniciava a ruptura, quando o jovem poeta de Charleville afirmara que toda a produção poética antecedente a sua não passava de “prosa rimada”.
A julgar por essa dupla abolição – a abolição do número e a abolição da condição de “prosa rimada”– não é difícil saber porque o gênero poético tem a condição paradoxal de ser a única modalidade de escrita na qual o número de autores excede o número leitores [1]. Sim, porque a maioria dos escrevem versos (e muitos dão um jeito de publicá-los) não lêem poesia, desconhecem os autores contemporâneos e vêem a arte do verso como instrumento de confissão, autopromoção e sublimação auto-afetiva. Numa palavra, poesia no Brasil é, ainda, um exercício ególatra e narcísico[2]. Drummond advertia para o fato de que, quando publicamos versos aos vinte anos, é porque temos vinte anos, porém, quando o fazemos aos sessenta, é porque somos poetas. Nada mais injusto com o mais importante e originário modo de criação da linguagem humana, como assinalaram, entre outros, Platão, Aristóteles, Vico, Hegel, Nietzsche e Heidegger.
Dada a opulência da produção e veiculação da poesia no Brasil, resta-nos nos perguntar acerca da qualidade do que se escreve. Não temos um número de leitores qualificados para avaliar a vastíssima produção que hoje abunda. O número de leitores “fortes” é reduzido, e os que temos não se prontificam a desperdiçar seu escasso tempo de leitura procurando agulhas no palheiro. Como o número de “poetas” e “versificadores” está sempre numa crescente devido às facilidades de publicação, as tentativas de mapeamento da poesia brasileira estão sempre situadas numa curva assimptótica, por mais exaustivas que sejam. E o mais trágico: estas tentativas não podem, nem poderão, dar visibilidade a poetas regionais[3]. Não caberão todos na disputada festa das celebridades literárias.
A Academia, que deveria formar o corpo qualificado de leitores, não os forma. Muitos dos profissionais que saem das Letras não têm sequer o hábito da leitura, desconhecem as obras. Ler Derrida e Homi Bhabha é mais importante para o Homo lattes do que ler Joyce e Pound. A beleza foi extorquida pelos conceitos. A teoria antecede a arte, a interpretação subjuga o infinito da criatividade. Este vício acadêmico fez com que nossos professores universitários, sobretudo aqueles das letras, não tivessem mais discernimento estético, capacidade crítica autônoma, percepção do que é a boa ou a má poesia. Vivemos a época em que a crítica, insulada na academia, desconhece o fenômeno poético por dentro. São incapazes de elaborar juízo estético sobre qualquer poema de um neófito, dizer se o poema é bom, em que aspecto é bom, e se não for um poema bem realizado, porque não o é e em que aspecto técnico ele pode ser melhorado[4]. Por conta deste déficit crítico, se neste exato momento histórico, por um milagre, estiver surgindo em nossos porões subterrâneos um novo Fernando Pessoa ou um novo Jorge de Lima, ele certamente passará despercebido. Os poetas neófitos estão órfãos da crítica, e a crítica só se dispõe a estudar o que já está consagrado.
Como a crítica se evadiu de sua responsabilidade pública, nosso sistema literário criou mecanismos privados de consagração. E estes subsistemas se auto-legitimam, longe de qualquer razão pública de julgamento, sem qualquer fairness. Uma guerra de egos e igrejas insuladas.
Eis um cenário perfeito para consagração de “publicitários” da arte. Sim, porque hoje, o cenário poético brasileiro é um mercado de estratégias inteligentes de autopromoção. Quem sabe se promover aparece, dá entrevistas, tira fotos em sua biblioteca pessoal com livros amontoados ao fundo. A palavra-chave neste meio é articulação, saber articular-se com as pessoas que promovem. Quem se propõe a promover e a se auto-promover está dentro do campo literário[5]. O resto é invisível. Ou não existe.
Não há nesta minha constatação qualquer tonalidade moralista, anti-mercadológica. Pessoalmente considero legítima a mercantilização da arte, seja a poesia ou qualquer outra. Não temos mais o mecenato. E o que resta ao poeta, em particular, e ao artista, em geral, é o bendito mercado. E o mercado é um estado de natureza hobbesiano: sobrevive quem é mais astuto, maquiavélico, sagaz. Entretanto, se nos colocarmos entre Pierre Bourdieu e Harold Bloom, isto é, entre uma visão que dessacraliza radicalmente a arte pela descrição crua de seus mecanismos de mercado e outra que opera por uma ostensiva eleição canônica de gênios, saberemos que o caminho deveria estar a meio-termo. Entre nós já houve este “meio-termo”. Hoje, porém, o que temos é uma versão caricatural da lógica mercantil descrita por Bourdieu. Nosso sistema literário, fragmentado em pequenas instâncias privadas de consagração, é hoje um grande engenho de gênios pré-fabricados.
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notas
[1] Uma parte significativa dos poetas que hoje publicam não lê o que outros poetas escrevem, exceto as obras dos amigos da congregação a que pertencem. A rarefação de público é um efeito gerado a partir dos próprios produtores. É como um dramaturgo que não tem o hábito de ir ao teatro.
[2] A Baixa popularidade da poesia no Brasil hoje é um fenômeno que merece ser mais bem estudado. Se olharmos para o nosso passado veremos que tínhamos uma longa genealogia de poetas carismáticos, amados pelo público brasileiro. Drummond, Bandeira, Castro Alves, Olavo Bilac, Augusto dos Anjos (post-mortem). Esta baixa popularidade, creio, não pode ser rasteiramente explicada pela egolatria da nova poesia brasileira. O público leitor também mudou seu perfil neste período. Trata-se, portanto, de uma transformação bilateral. Eis um bom tema de tese para quem procura.
[3] Refiro-me aqui ao grandioso projeto de Assis Brasil, de resto, louvável.
[4] Este tipo de crítica sempre existiu entre nossos poetas e escritores. Para comprovarmos basta lermos as várias correspondências entre nomes canônicos da nossa literatura.
[5] Estes jovens poetas que estão em toda parte (infovias, revistas, encontros poéticos) despendem longo e cansativo esforço em ratificar seu lugar no campo literário. O trabalho de autopromoção é sempre desgastante, porém, sabemos todos, somente assim o poeta pode ter seu nome reconhecido e seus livros divulgados. Talvez por isso, sempre há entre os poetas um elogio de sua capacidade de mobilização cultural. Mas não seria a poesia um pacto mefistofélico que nos obrigaria a uma vida ascética, a uma renúncia do mundo estando no mundo? Este não seria o preço de uma vida poética levada a sério?
Publicado originalmente na revista dEsEnrEdoS, número 01, julho 2009
A poesia brasileira contemporânea está em crise, dizem alguns. Entretanto, basta darmos uma rápida olhada nos canais midiáticos de veiculação que constataremos um mercado afluente de publicações, editoras, revistas literárias, blogs, sites, jornais e encontros poéticos. Este seria um indício numérico da opulência produtiva de que desfruta a poesia brasileira hodierna. Sabemos que dentre os gêneros de escrita a poesia ocupa uma desconfortável posição anti-comercial. E não é por acaso. Não se formam bons leitores do gênero com um Fiat Lux. A educação estética para compreensão substantiva e formal da palavra poética demanda muito tempo, muito estudo e, até mesmo, certa experiência de vida. A leitura de um poema não se dá pela busca da transitividade do signo, pois que o signo mesmo é seu artefato, e a transição, quando ocorre, não obedece às regras do discurso ordinário, ela se dá pelo deslocamento da palavra em relação ao status quo vernacular. A fruição da poesia é, assim, uma modalidade específica de leitura. Talvez tivesse razão Paul Valéry ao afirmar que, desde o advento do simbolismo francês, o gênero poético passou a se afirmar pela “abolição do sufrágio do número”. Antes ainda, com Rimbaud, já se iniciava a ruptura, quando o jovem poeta de Charleville afirmara que toda a produção poética antecedente a sua não passava de “prosa rimada”.
A julgar por essa dupla abolição – a abolição do número e a abolição da condição de “prosa rimada”– não é difícil saber porque o gênero poético tem a condição paradoxal de ser a única modalidade de escrita na qual o número de autores excede o número leitores [1]. Sim, porque a maioria dos escrevem versos (e muitos dão um jeito de publicá-los) não lêem poesia, desconhecem os autores contemporâneos e vêem a arte do verso como instrumento de confissão, autopromoção e sublimação auto-afetiva. Numa palavra, poesia no Brasil é, ainda, um exercício ególatra e narcísico[2]. Drummond advertia para o fato de que, quando publicamos versos aos vinte anos, é porque temos vinte anos, porém, quando o fazemos aos sessenta, é porque somos poetas. Nada mais injusto com o mais importante e originário modo de criação da linguagem humana, como assinalaram, entre outros, Platão, Aristóteles, Vico, Hegel, Nietzsche e Heidegger.
Dada a opulência da produção e veiculação da poesia no Brasil, resta-nos nos perguntar acerca da qualidade do que se escreve. Não temos um número de leitores qualificados para avaliar a vastíssima produção que hoje abunda. O número de leitores “fortes” é reduzido, e os que temos não se prontificam a desperdiçar seu escasso tempo de leitura procurando agulhas no palheiro. Como o número de “poetas” e “versificadores” está sempre numa crescente devido às facilidades de publicação, as tentativas de mapeamento da poesia brasileira estão sempre situadas numa curva assimptótica, por mais exaustivas que sejam. E o mais trágico: estas tentativas não podem, nem poderão, dar visibilidade a poetas regionais[3]. Não caberão todos na disputada festa das celebridades literárias.
A Academia, que deveria formar o corpo qualificado de leitores, não os forma. Muitos dos profissionais que saem das Letras não têm sequer o hábito da leitura, desconhecem as obras. Ler Derrida e Homi Bhabha é mais importante para o Homo lattes do que ler Joyce e Pound. A beleza foi extorquida pelos conceitos. A teoria antecede a arte, a interpretação subjuga o infinito da criatividade. Este vício acadêmico fez com que nossos professores universitários, sobretudo aqueles das letras, não tivessem mais discernimento estético, capacidade crítica autônoma, percepção do que é a boa ou a má poesia. Vivemos a época em que a crítica, insulada na academia, desconhece o fenômeno poético por dentro. São incapazes de elaborar juízo estético sobre qualquer poema de um neófito, dizer se o poema é bom, em que aspecto é bom, e se não for um poema bem realizado, porque não o é e em que aspecto técnico ele pode ser melhorado[4]. Por conta deste déficit crítico, se neste exato momento histórico, por um milagre, estiver surgindo em nossos porões subterrâneos um novo Fernando Pessoa ou um novo Jorge de Lima, ele certamente passará despercebido. Os poetas neófitos estão órfãos da crítica, e a crítica só se dispõe a estudar o que já está consagrado.
Como a crítica se evadiu de sua responsabilidade pública, nosso sistema literário criou mecanismos privados de consagração. E estes subsistemas se auto-legitimam, longe de qualquer razão pública de julgamento, sem qualquer fairness. Uma guerra de egos e igrejas insuladas.
Eis um cenário perfeito para consagração de “publicitários” da arte. Sim, porque hoje, o cenário poético brasileiro é um mercado de estratégias inteligentes de autopromoção. Quem sabe se promover aparece, dá entrevistas, tira fotos em sua biblioteca pessoal com livros amontoados ao fundo. A palavra-chave neste meio é articulação, saber articular-se com as pessoas que promovem. Quem se propõe a promover e a se auto-promover está dentro do campo literário[5]. O resto é invisível. Ou não existe.
Não há nesta minha constatação qualquer tonalidade moralista, anti-mercadológica. Pessoalmente considero legítima a mercantilização da arte, seja a poesia ou qualquer outra. Não temos mais o mecenato. E o que resta ao poeta, em particular, e ao artista, em geral, é o bendito mercado. E o mercado é um estado de natureza hobbesiano: sobrevive quem é mais astuto, maquiavélico, sagaz. Entretanto, se nos colocarmos entre Pierre Bourdieu e Harold Bloom, isto é, entre uma visão que dessacraliza radicalmente a arte pela descrição crua de seus mecanismos de mercado e outra que opera por uma ostensiva eleição canônica de gênios, saberemos que o caminho deveria estar a meio-termo. Entre nós já houve este “meio-termo”. Hoje, porém, o que temos é uma versão caricatural da lógica mercantil descrita por Bourdieu. Nosso sistema literário, fragmentado em pequenas instâncias privadas de consagração, é hoje um grande engenho de gênios pré-fabricados.
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notas
[1] Uma parte significativa dos poetas que hoje publicam não lê o que outros poetas escrevem, exceto as obras dos amigos da congregação a que pertencem. A rarefação de público é um efeito gerado a partir dos próprios produtores. É como um dramaturgo que não tem o hábito de ir ao teatro.
[2] A Baixa popularidade da poesia no Brasil hoje é um fenômeno que merece ser mais bem estudado. Se olharmos para o nosso passado veremos que tínhamos uma longa genealogia de poetas carismáticos, amados pelo público brasileiro. Drummond, Bandeira, Castro Alves, Olavo Bilac, Augusto dos Anjos (post-mortem). Esta baixa popularidade, creio, não pode ser rasteiramente explicada pela egolatria da nova poesia brasileira. O público leitor também mudou seu perfil neste período. Trata-se, portanto, de uma transformação bilateral. Eis um bom tema de tese para quem procura.
[3] Refiro-me aqui ao grandioso projeto de Assis Brasil, de resto, louvável.
[4] Este tipo de crítica sempre existiu entre nossos poetas e escritores. Para comprovarmos basta lermos as várias correspondências entre nomes canônicos da nossa literatura.
[5] Estes jovens poetas que estão em toda parte (infovias, revistas, encontros poéticos) despendem longo e cansativo esforço em ratificar seu lugar no campo literário. O trabalho de autopromoção é sempre desgastante, porém, sabemos todos, somente assim o poeta pode ter seu nome reconhecido e seus livros divulgados. Talvez por isso, sempre há entre os poetas um elogio de sua capacidade de mobilização cultural. Mas não seria a poesia um pacto mefistofélico que nos obrigaria a uma vida ascética, a uma renúncia do mundo estando no mundo? Este não seria o preço de uma vida poética levada a sério?
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