Parabélum. Atropelando a Literatura ou assassinando a pesquisa histórica?
[Adriano Lobão Aragão]
Determinados livros que documentam a memória de um povo, sobretudo naquilo que está ausente na história oficial, precisam ser escritos. O assassinato e a devoção pelo motorista Gregório, por exemplo. Entretanto, é preciso lembrar que Literatura é forma, estilo, estética. Somente assim, uma história absolutamente piauiense pode interessar bem mais além que a memória coletiva, popular. É por isso que Machado de Assis e Lima Barreto são importantes para nós, que não nascemos nem moramos no Rio de Janeiro. É por isso que Dostoievski, Eça de Queirós e Gabriel Garcia Márquez são igualmente importantes para nós. E isso é, essencialmente, Literatura. Estamos tratando de um campo artístico específico.
Por não mergulhar no desafio literário propriamente dito, Parabélum, escrito por Enéas Barros, talvez funcionasse melhor como documentário, como um livro de pesquisa, reportagem, e isso com muito mérito, relevância e dignidade. Talvez até com maior perenidade e horizonte de leitura. É inegável a seriedade do escritor e o esforço empreendido na pesquisa bibliográfica, documental e de campo que levou Enéas a recompor a trajetória do motorista Gregório, morto barbaramente nas primeiras décadas do século XX e, ao longo dos anos, investido de culto e misticismo popular.
Mas ao transformar em romance o trágico destino de Gregório, faltou ao autor uma veia narrativa autêntica, pessoal e bem resolvida. Unir pesquisa a clichês romanescos reduz a eficiência e credibilidade da pesquisa e, ao mesmo tempo, a relevância literária numa obra que, embora se quisesse romance de não-ficção, falta-lhe o devido apuro. Entretanto, resta uma esperança, pois ao abordar a personagem Doralice e seus frustrados anseios por uma vida melhor, o autor acertou a mão. Enfim, determinados livros precisam ser escritos, mas para almejar Literatura, é preciso algo mais.
Comentários
não li o livro, mas seu texto toca fundo em alguns problemas que eu tenho refletido. Em primeiro lugar, me espanta como vários episódios "épicos", "líricos" ou "míticos" da história nacional são desprezados ou, quando muito, mal usados na literatura. Isto começa com "A confederação dos Tamoios". Rapaz, é impressionante como não existem grandes obras literárias sobre a Serra Pelada, sobre o massacre da Candelária, sobre Eldorado dos Carajás, sobre a construção de Brasília, sobre o MST. No país do futebol, não há de fato um grande romance sobre futebol (há um razoável, do Renato Pompeu). Se voltarmos para nossa cultura local, cadê um grande poema sobre o Cabeça-de-cuia? É interesse como, ao contrário de nós, os EUA, através do cinema e do romance, não deixam passar um episódio interessante. Digo isso nem tanto pra nos "humilhar" em comparação com os EUA, mas para refletir, meio espantado, por que isto ocorre conosco. Minha segunda perplexidade, é como nós, piauienses, temos uma fome de identicação maior que em outros lugares e, às vezes, para matar esta fome, temos que reduzir a arte ao pitoresco e à propaganda didática. Nem longe quero negar o valor exemplar do empenho ético de alguém que se põe a escrever sobre sobre um tema desses, que envolve nossa "mitologia particular". O problema é que, como disse alguém, não sei se o Sartre ou o Wilde, os piores poemas são feitos com as melhores intenções.
Wanderson Lima
Quero fazer também uma observação sobre o comentário do Wanderson. Ele pergunta pelo grande poema sobre o Cabeça-de-cuia, pelo grande romance sobre o futebol etc. Eu simplesmente pergunto: por que essa insistência com o grande, o genial, o extraordinário? Dos escritores brasileiros e piauienses hoje, nenhum é um gênio. Muitos, com o ego do tamanho do mundo, se acham grandes. Mas não o são. Quanto aos textos sobre a lenda do Cabeça-de-cuia, eles existem. O Sérgio Batista tem um conto a respeito. Não é um grande texto, mas é agradável de ler. Vale a pena. Acredito que é assim que se constrói uma literatura, devagar, sem grandes ambições, sem a preocupação em querer ser altamente genial. É um trabalho lento, leva séculos. E não nos iludamos:"Ao subdesenvolvimento econômico corresponde o atraso estético".
Quanto à citação que o Wanderson não sabe se é de Sartre ou Wilde, ela é atribuída a André Gide. Digo atribuída porque nunca li nada desse escritor. Mas, sempre que a encontro, ela está colocada como sendo dele. Agora, é uma afirmação muito questionável. Boa literatura se faz com qualquer tipo de sentimento, seja bom ou ruim. Não é o tipo de intenção, se boa ou má, que vai, antecipadamente, definir o valor de uma obra literária. "Morte e vida severina" é um poema católico, feito com a boa intenção de agradar os trabalhadores do eito e não é má literatura. Pelo contrário. "Grande Sertão:Veredas" é a vitória do bem contra o mal, da lealdade contra a traição; é o esforço de um homem se afastando do Diabo e procurando Deus. "Breve Sexta-feira", de Isaac B. Singer, é a celebração do amor conjugal, e é um texto espetacular. Já "O apanhador no campo de centeio" é a vitória do fracasso e da má vontade e é um romance genial. Portanto, repito, boa literatura se faz com qualquer tipo de sentimento.
W Ramos
creio que o grande problema seja mesmo essa redução da arte ao pitoresco e à propaganda didática, conforme você se referiu. Isso mata qualquer anseio literário.
abraço
escrevi o texto sobre Parabélum há meses e só tive conhecimento do texto do Dílson depois que publiquei o meu. Não pensei em termos de "oposição", apenas a expressão de pontos de vista diferentes.
Você está certo quanto aos malefícios do elogio, sobretudo quando exagerados e indevidos.
Quanto ao comentário sobre a opinião do Wanderson, pretendo escrever escrever sobre esse tema em breve, numa nova postagem. Apenas adianto que não interpretei da mesma maneira que você.
abraço