Limites da representação


Guernica
, Pablo Picasso



Limites da representação
[por Wanderson Lima]

Alcançável, próximo e não-perdido permaneceu em meio das perdas este único: a língua. Ela, a língua, permaneceu não-perdida, sim, apesar de tudo. Mas ela teve que atrevassar suas próprias ausências de respostas, atravessar um emudecer, atravessar os milhares de terrores e o discurso que traz a morte”(Paul Celan)



Acabo de ver na rede um poema sobre a tragédia do Haiti. Chama-se, cacofonicamente (embora, neste ponto, haja outras denominação, tais como rima interna ou assonância), “Ai de Ti, Haiti”. Está longe de mim duvidar do senso humanista e humanitário do seu autor, mas, pensando em certas teses de Benjamin, Wittgenstein e Costa Lima, me pergunto: não há um limite para a representação? Até que ponto o horror pode ser transfigurado? Não se trata aqui de concordar com a divisa romântica, tão bem criticada por Mikhail Bakhtin, segundo a qual há uma incompatibilidade entre nossa riqueza interior e a parca capacidade da linguagem de representar as nuanças desse mundo subjetivo. É algo mais fundo: falo dos limites da dor nas grandes tragédias, falo da nossa experiência do horror vacui. Quando falo disso, lembro de dois casos extremos: horror metafísico representado em Samuel Beckett e o horror da shoah representado em Paul Celan. Tudo bem, duas experiências, podemos dizer, bem sucedidas. Mas alguém é capaz de medir as conseqüências desse gesto na vida pessoal de cada um deles? Não dá para representar a experiência do horror sem um empenho ético-existencial e uma aguda consciência estética. Sei que nestas linhas sequer levanto o véu que cobre um tema de dimensões tão complexas, e que hoje no Brasil tem em Marcio Seligmann-Silva (1 e 2) um estudioso erudito e seguro, mas creio que não seja equívoco inferir que, se não há má-fé, há ao menos ingenuidade em se representar poeticamente um horror como o que decorreu no Haiti sem se pôr em questionamento os limites da representação, o papel social e testemunhal da arte e o lugar que ocupa aquele que representa. Susan Sontag, remetendo-se à fotografia, revela um traço assaz ambivalente que marca a representação da dor do outro: “Cuanto más remoto o exótico el lugar, tanto más expuestos estamos a ver frontal y plenamente a los muertos y moribundos. Así, el África poscolonial está presente en la conciencia pública general del mundo rico —además de su música cachonda— sobre todo como una sucesión de inolvidables fotografías de víctimas de ojos grandes: desde las figuras hambrientas en los campos de Biafra a finales de los sesenta, hasta los supervivientes del genocidio de casi un millón de tutsis ruandeses en 1994 y, unos años después, los niños y adultos con las extremidades cercenadas durante el programa de terror masivo conducido por las RUF, las fuerzas rebeldes de Sierra Leona. (...) Estas escenas portan un mensaje doble. Muestran un sufrimiento injusto, que mueve a la indignación y que debería ser remediado. Y confirman que cosas como ésas ocurren en aquel lugar. La ubicuidad de aquellas fotografías, y de aquellos horrores, no puede sino dar pábulo a la creencia de que la tragedia es inevitable en las regiones ignorantes o atrasadas del mundo; es decir, pobres.” (In: Ante el dolor de los demás, 2003). Definitivamente, ai de ti, Haiti!

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