Jacques-Alain Miller falando de Jorge Luis Borges e Jacques Lacan

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Tive o privilégio, na semana última, de ouvir Borges durante duas horas em sua casa. Não posso dizer se me escutava, mas tive o cuidado de não lhe fazer perguntas sobre psicanálise, pois não a tem em grande conta. De qualquer modo, seu conhecimento sobre a matéria é anterior à cegueira e não contém referência à obra do dr. Lacan, que, com certeza, desconhece. Indaguei de sua relação com a literatura francesa, ao que respondeu de bom grado, e, devo concordar, haver nexo entre minhas perguntas e suas opiniões; conquanto ele, visivelmente, não soubesse a situação do outro para ouvi-lo. É coisa difícil para um cego! Mas ele não se importa: parece que quando o diálogo se processa razoavelmente bem, tem gosto em falar indefinidamente. Cantou um tango, recitou versos de Mallarmé, que aliás acha de mau gosto, teve uma palavra maldosa para Joyce, falou de sua família. É o que Lacan denomina o discurso corrente: os interlocutores se revezam, dando-lhe ocasião de desafiar o que se apresenta como uma espécie de discurso interior, cujo ouvinte é sempre o mesmo, pois é difícil de individualizar a presença que lhe trazem, não tendo ele oportunidade senão de repetir sempre o mesmo discurso.

Às vezes, Lacan dizia: 'Todos monologam'. É o que o mal-entendido contém, que, definitivamente, todos monologam. Só na psicanálise, devido à maneira como se apresenta o outro, há uma pequena chance de monologar de outro modo, para ser prudente e não incensar a operação, no caso vertiginosa.

Geralmente, a pessoa é compreendida já antes de começar a falar, e aí está o mal-entendido, a pré-compreensão.

Carrego um certo número de significantes, graças aos quais se pode isolar minha pessoa; isso posto, é aguardar que eu corresponda à minha reputação, não importando se lisonjeira, como apregoada por meu amigo Forbes, ou terrificante. Esperar que eu me comporte conforme o pressuposto, já comprova o imediato mal-entendido. Devo dizer também que o local é determinante, por isso aprecio este lugar retirado, onde podemos respirar livremente.

Será que Lacan não chegou ao Brasil como parte integrante de cultura francesa dos anos 60? Ele foi propelido à notoriedade internacional no memento em que a influência do sartrismo, na França, se debilitava, e os estruturalistas passaram à primeira fila. Assim, fizeram um trem, colocaram Lacan dentro e o mandaram viajar, espalhando-se por boa parte do planeta, nas regiões onde se deixam espalhar as coisas.

Tudo era de imediato pré-compreendido e Lacan junto com tudo. Começa-se, porém, a perceber que seu caso é diferente, pois o interesse por ele perdura há algum tempo e, justamente, em relação ao mal-entendido. (...)"



[in Miller, Jacques-Alain. Lacan Elucidado, palestras no Brasil. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1997. p. 21-22]



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