Sintaxe da interrupção - Annita Costa Malufe comenta a poesia de Manoel Ricardo de Lima



- Extraído do Jornal do Brasil, caderno Ideias, 10/04/2009


Sintaxe da interrupção
por Annita Costa Malufe*


“Não entendo muito bem o que isso quer dizer”: tal é a epígrafe de Quando todos os acidentes acontecem(7Letras, 86 páginas, R$ 25), mais recente livro de poemas do piauiense Manoel Ricardo de Lima. A frase vem em francês: “Je ne comprends pas très bien ce que cela veut dire”, e está associada ao poeta Emmanuel Hocquard; mas, claro, é uma expressão comum, cotidiana, que podemos ouvir nas ruas, a qualquer momento. Uma frase simples, mas que fala de algo complexo também: por um lado, uma hesitação diante do sentido de alguma coisa; por outro, a sinceridade e o risco de assumir essa mesma hesitação. Em tempos de assertividade, em que o senso comum nos obriga a ter sempre uma opinião pronta e decisiva para tudo, esta frase pode ser a pequena epígrafe de uma atitude ética diante do mundo. Quem tem coragem hoje de assumir que não entendeu muito bem alguma coisa?

Diz Manoel Ricardo de Lima, em entrevista concedida à revista Modo de usar & co: “O que me interessa em poesia e também em crítica é o que é frágil, às avessas, uma espécie de silêncio daquele que duvida, daquele que sabe que pode morrer ”. Digamos que o grande convite dos poemas que compõem seu livro tem a ver com esta pré-disposição ao frágil, ao hesitante. Um convite ao leitor para não entender muito bem o que o poema “quer dizer” e se permitir experimentar uma certa flutuação ou vertigem do sentido – para usá-la como bem quiser, tal o título de um dos poemas do livro: “Use a vertigem como quiser” .

Novos sentidos

Este jogo na beirada entre o sentido e o não-sentido, na beirada mesmo em que a possibilidade de novos sentidos se dá, implica em um certo risco, é claro (o de que o sentido não se dê); implica em justamente brincar-se com este limiar, o que não costuma ser muito recorrente em nossa poesia. Talvez o que predomine, ainda hoje, seja a vontade de efetivamente “dizer algo”, algo inteligível, em que o sentido permaneça de certa forma dentro dos contornos previstos pelo autor.

A pergunta que entretanto ecoa nos poemas de Manoel é: que experiência é esta de se expor à vertigem do não-sentido, do silêncio e, no limite, da morte? Pergunta que talvez se faça presente também na leitura de poetas como Ana Cristina Cesar ou, para citar um mais recente, Marcos Siscar, nos quais encontraríamos esta atitude, ao mesmo tempo simples e audaciosa, que consiste em deixar pontas soltas, permitir que o poema se faça de “falas inacabadas” (lembrando o título de outro trabalho de Manoel Ricardo de Lima), de inconclusões. Muitas vezes, essa atitude é interpretada como um gesto de hermetismo, o poeta escondendo significados preconcebidos por trás de suas elipses, deixando charadas para o “bom” crítico decifrar. Mas prefiro entender esta vizinhança com o silêncio como uma tentativa de precipitar o poema – e o leitor, portanto – no abismo do não-senso, fazê-lo correr o “risco de perder os pés na areia”, como diz um dos poemas. Infiltrar fissuras, rasgos na paisagem do poema, “tudo é buraco na paisagem”. Ou seja, pontos em branco, lugares vazios em que o sentido (novo) ainda não se fez, em que os significados (caducos) ameaçam se desfazer, corroendo a paisagem conhecida.

Daí a recorrência da imagem do deserto, ou o sertão, em seus poemas, “o deserto onde o nome se apaga”, ou quem sabe, onde o nome ainda não existe. Algo em que sentimos ressoar alguns pensamentos filosóficos contemporâneos, não estranhos ao autor, como os de Gilles Deleuze e Maurice Blanchot. Nesses direcionamentos, o silêncio – nos cortes, nas suspensões da frase – ganha a possibilidade de ser vivenciado como um gesto mais próximo da abertura de sentidos do que de seu fechamento. Aqui, Manoel Ricardo de Lima radicalizou este procedimento, que passa pela invenção de uma sintaxe de interrupções. Se em seu livro de estreia Embrulho (7Letras, 2000), o corte já se faz um tanto presente, nos versos extremamente curtos, ainda sobrevivem ali imagens bastante nítidas e sintéticas, como se a interrupção estivesse restrita à dimensão do significante. Pode-se dizer o mesmo do pequeno As mãos (Lumme Editor, 2006), em que há uma brincadeira com os cortes – aí internalizados nas frases de uma prosa poética – criando um certo modo sincopado da fala, mas no qual, no entanto, um fio narrativo ainda é preservado.

Reticências e interrupções

Já em Quando todos os acidentes acontecem, a interrupção está incorporada, virou “modo de ser” desses poemas, que se compõem de cenas esmigalhadas, nas quais narrativas múltiplas podem surgir mas sempre inconclusas: “Todas as manhãs o aeroporto/ aqui fica longe para/ estas passagens e estes a quem se,/ hã? tomo nota da viagem na/ borra do caderno, um cilindro, dois/ cilindros e uma música (...)” . As imagens e reflexões também seguem este mecanismo das reticências e interrupções, como pinceladas que tiveram seu gesto suspenso: “O que dissipa um trato e um/ gesto? o bruto o rude o doce/ e uma ferida: por que não? o que/ dissipa, o que mata// aqui são quatro movimentos/ de vento, vários outros e mais/ alguns ao redor, por fora e pela/ margem até deixar de ser/ rio escala medida e desmesura (...)”.

Mas suspenso por quem, por o quê? O poema continua: “Ora ora se disse não/ disse é no quase que resvala/ a vida inteira (...)”: é uma fala que interrompe, uma exclamação, “ora ora”, como o “hã?” do outro poema, uma dúvida ou então um acaso, um tropeço, um acidente qualquer. Acidentes que insistem em mudar o rumo da frase, o curso do rio, e fazer da vida este constante recriar de pontes provisórias sobre o abismo, sobre o não nomeado: “Não sei como dizer meu nome”. (Deixemos aqui esta frase em suspenso.)

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*Poeta, doutora em teoria e história literária pela Unicamp, autora de Como se caísse devagar (Editora 34, 2008), entre outros.

Comentários

Anônimo disse…
Este homem é genial! Tive o imenso prazer de conhecê-lo e por sorte, ter uma dedicatória em "55 começos" e "Quando todos os acidentes acontecem", livros que ganhei com enorme carinho. São livros que misturam as ideias e para se tornarem prediletos custam apenas a leitura. Obra magnifica. Estou eu aqui, olhando para ele em minha instante. ;*

Abraços,


Claire