Nada é acidental - Alexandre Nodari comenta a poesia de Manoel Ricardo de Lima



- Extraído do Diário Catarinense, caderno Cultura.


Nada é acidental
por Alexandre Nodari



No mais recente livro de Manoel Ricardo de Lima, a figura com que mais recorrentemente nos deparamos é a do deserto: desde o primeiro poema, Areia, onde alguém “...fala alto/ sobre desertos sem /qualidade” – até o último, sintomaticamente denominado quase – uma resposta a seu amigo Aníbal Cristobo, de quem se duvida se “é gente (...) se existe” –, quando “(...) talvez/ um deserto” aparece como aquilo que se situa “(...) entre/ o diabo e deus”, a imagem do deserto, às vezes transmutada na da praia de “areia funda” (onde até mesmo a paisagem desaparece) não cessa de retornar. Mas ele não é apenas uma imagem – e não é uma metáfora: “deserto é um nome”, diz o terceiro dos Meus amigos que falam muito. Neste diálogo se condensa a discussão que permeia o livro: o que significa o gesto de nomear? Ou melhor, como nomear? O nome, lemos, é “Como uma escolha”, porém, “Escolha também é um nome”. Este paradoxo se acentua na medida em que deserto nomeia, também, uma temporalidade, a do cotidiano, no qual os dias não têm palavras, no qual “nada é diferente” e, por isso, nem repetindo o gesto de olhar pela janela, apareça algo que não o “embaço”. No cotidiano, dominam “os mapas” e “todos os mapas são, do começo ao fim, uma lista de nomes”, nomes que se amarelam. É no Aqui da areia funda, mas também no agora do cotidiano, “onde vinco o deserto/ onde o nome se apaga”.

Sabemos a importância da incorporação do cotidiano na poética modernista (Oswald e Mário de Andrade, etc). Contudo, seria obtuso acreditarmos numa continuidade direta e no compartilhamento de abordagens. No imediato pós-guerra, Lúcio Cardoso escrevia o seu Diá-rio de Terror, onde este era definido justamente como “uma completa impossibilidade de viver nos termos comuns do cotidiano; é a vida comum que me expulsa”. Todavia, se o every-day life era negado em nome do “O terror [que] é a época da criação do centro das catástrofes”, nem por isso o progresso aparecia como alternativa: “Num certo sentido, não há futuro para mim, porque não o atual; sinto-me arder como um facho de exceção, e o que me queima não é o meu possível, mas o meu definitivo, e este é permanente”. Assim, é uma outra temporalidade, a temporalidade de um “ser sem tempo” que aparece justamente pela incorporação da temporalidade no próprio ser: “O futuro não existe porque de há muito eu me constituí, o meu definitivo futuro”. Do mesmo modo, Heidegger, ao definir o tempo da cotidianidade, este império do impessoal, o caracterizava como a dissolução do “próprio Dasein no modo de ser dos ‘outros’, e isso de tal maneira que os outros desaparecem ainda mais em sua possibilidade de diferença (...) O impessoal desenvolve sua ditadura nesta falta de surpresa (...) O impessoal é e está no modo de inconsistência do próprio e de impropriedade”. Todavia, acrescenta, isto “não significa uma diminuição ou degradação da facticidade do Dasein, da mesma forma que o impessoal não é um nada”. Aquilo que sobra do nome, os restos do nome, as outras coisas no chão, é este o núcleo de Quando os acidentes acontecem (7Letras, Rio de Janeiro, 2009, 86 págs., R$ 25). Não uma negação do cotidiano, nem sua superação, mas o uso daquilo que ele mais desgasta – isto é, os nomes. Por isso, é nesta outra linhagem de leitura do moderno que se insere a poesia de Manoel Ricardo de Lima, a mesma de Clarice Lispector. Não há propriamente nomes nos “romances” de Clarice, e sim siglas (G.H., S.M.) e estereótipos (Macabéa), que não são cifras, mas a ausência de cifras. A paixão de G.H., a saber, a história da humanidade, inicia-se justamente em um evento fortuito, banal, do cotidiano, o encontro com uma barata. E é justamente no cotidiano que a narradora anônima de Água viva sente o que chama de “beatitude” – “uma bem-aventurança física que a nada se compara. O corpo se transforma num dom”: “eu não estava de modo algum em meditação, não houve em mim nenhuma religiosidade. Tinha acabado de tomar café e estava simplesmente vivendo ali sentada com um cigarro queimando-se no cinzeiro”. Por isso, não há, também, propriamente discurso, a literatura não se configura como “direito a resposta” (e responsabilidade, a saber, direito), mas como Direito ao grito (um dos possíveis títulos para A hora da estrela). É da conjunção do grito e dos gestos, lembra Nietzsche, que nasce a linguagem. Ou seja: o cotidiano, com o seu esfacelamento dos nomes, abre caminho para uma cena originária, ou melhor, para a temporalidade da origem, para o fazer histórico.

É assim que, no último dos quadrados brancos – este outro deserto vertiginoso que o livro nos propõe –, um evento banal e repetitivo, uma mulher que “caminha a calçada, o asfalto o parque e toda a vizinhança” com o seu cão, caminha também o poeta: “mas nunca vi os olhos dessa mulher. nem de longe. não sei a cor dos olhos dessa mulher. ela me caminha com o cão, o outro”. Este cão-poeta sabe que sua fala não tem conteúdo, sabe que “dizer é quando tudo explode”, no mesmo gesto em que enuncia que “todo silêncio é impossível”. Entre a possibilidade de dizer e a impossibilidade de não-dizer se encontra a “esperança”, entre a mulher e o cão, “ela e o outro”, as “únicas que tenho”, encontramos o que vulgarmente chamamos de linguagem. Do mesmo modo, se o cotidiano afirma implacavelmente que “as cicatrizes não se transferem” (verso de Cacaso apropriado por Manoel Ricardo de Lima, prática comum em seus poemas), se, como um “trem rasga /corta e carrega a pergunta: qual destino, e o tempo”, se “é sem cuidado sem morrer”, sempre é possível mentir, como diz o título que nomeia estes versos.

Este tempo da mentira e do grito, o tempo do cotidiano, é o tempo de Babel, Quando todos os acidentes acontecem: “Por isso chamou-se por nome Babel/ pois lá babelizou Ele-O Nome/ a língua-lábio de toda a terra/ E de lá dispersou-os Ele-O Nome/ sobre a face de toda terra”, lemos nesta belíssima tradução do segundo exílio do homem feita por Haroldo de Campos. Deus, que não passa de um nome, o arquinome, a possibilidade de nomear, a linguagem, é também aquele que proíbe a coincidência dos nomes e interpõe entre os homens desertos de distância. Daí a glossolalia presente no livro, repleto de trechos em outras línguas, de nomes de localidades dos quatro cantos do mundo, e do seu constante efeito de eco, de repetição que desgasta o sentido ao mesmo tempo em que abre a outro: “longe para o dedo um eco e/ uma repetição da voz sem fim longe/ para o dedo um eco e uma repetição/ da voz”. O esvaziamento do significante, aponta Laclau, é uma das condições do populismo, e tem como último grau a figura do líder – um puro nome, isto é, Deus. Este é um dos modos de lidar com a babelização, com o fato, comum a todos, de que “não sei como dizer meu nome”. Fazendo coincidir toda “língua-lábio” em um só vocábulo, em um só lócus (a terra prometida, o retorno ao Éden) a exceção se torna a regra. Mas há outra topografia do deserto: na letra de música que escreveu para seu amigo Jóga, Björk identificava no “estado de emergência”, “topografias emocionais”, onde as “coincidências fazem sentido, somente com você”. Para que haja o “verdadeiro estado de exceção” de que falava Walter Benjamin, é preciso sempre mais do que um. No posfácio ao livro de Manoel, Raúl Antelo observa justamente que “não há incidência que não seja, ao mesmo tempo, uma coincidência, um acontecimento que, mal ou bem, cai com outra coisa”. O sentido da coincidência é o seu emergir sempre mais-que-um, o que significa, sempre amoroso. Daí que a poesia lide com a linguagem (com Deus) de forma diametralmente oposta ao populismo: não faz coincidir sentidos em um significante único, mas expõe a possibilidade de que dois significantes vazios, dois nomes que nada dizem, aconteçam juntos, construam contemporaneamente uma nova topografia da linguagem e da história, no intervalo entre grito e mentira. Na poesia – e talvez só nela –, nada é acidental: ela não propõe um regresso idílico à pátria uma pré-Babel. Ao contrário: dá “de presente o exílio/ a alguém”.


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Alexandre Nodari é doutorando em Teoria Literária (UFSC/CNPq). Editor do Sopro: http://www.culturaebarbarie.org/sopro

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