H. DOBAL, LEITOR DE DA COSTA E SILVA: representação poética e desleitura [Parte03]

__________Da Costa e Silva


H. DOBAL, LEITOR DE DA COSTA E SILVA:
representação poética e desleitura



por Wanderson Lima


[Continuação...]

II. REPRESENTAÇÃO DO PIAUÍ EM DA COSTA E SILVA


Um exame nas produções poéticas de Da Costa e Silva irá nos mostrar que a parte de sua lírica que se volta para motivos piauienses oscila entre : i) um descritivismo que engloba técnicas parnasianas (rigor formal) e impressionistas (especulação das sensações provocadas pelo objeto, produção em série com sutis variações sobre um mesmo tema) e ii) um romantismo tardio que impõe o filtro da subjetividade idealizante ao objeto que capta. Tal oscilação pode ser vislumbrada no cotejo de dois conhecidos sonetos do autor:

O Aboio


O sol desfez-se em ouro nas quebradas,
Surge a lua de prata, além da serra,
Nos saudosos sertões da minha terra,
Pelo tempo feliz da vaquejada,

À hora azul do crepúsculo, as boiadas
Vêm chegando aos magotes para a ferra,
Em correrias, num tropel de guerra,
Nuvens de pó formando na estrada...

Mas uma rês desgarra de repente;
No cavalo fogoso e mais ligeiro
Perseguem-na a correr, inutilmente.

Ouve-se o aboio no sertão inteiro...
Volta a rês ao curral, pausadamente,
Vencida ao som do canto do vaqueiro.


Amarante

A minha terra é um céu, se há céu sobre a terra:
É um céu sob outro céu tão límpido e tão brando,
Que eterno sonho azul parece estar sonhando
Sobre o vale natal, que o seio à luz descerra...

Que encanto natural o seu aspecto encerra!
Junto à paisagem verde, a igreja branca, o bando
Das casas, que se vão, pouco a pouco, apagando
Com o nevoento perfil nostálgico da serra...

Com seu povo feliz, que ri das próprias mágoas,
Entre os três rios, lembra uma ilha, alegra e linda,
A cidade sorrindo aos ósculos das águas.

Terra para se amar com o grande amor que eu tenho!
Terra onde tive o berço e de onde espero ainda
Sete palmos de gleba e os dois braços de um lenho!


Os dois sonetos acima, ambos do livro Zodíaco (1917), servirão de ponto de partida para comentarmos a oscilação (parnaso-impressionismo X neo-romantismo) da poesia telúrica de Da Costa e Silva.

A lírica dacostiana é, em sua quase totalidade, idealista, metafísica. Tudo nela tende a tornar-se arquétipo. O particular e concreto tende a tornar-se símbolo, como vemos nos dois sonetos acima: no primeiro, uma cena prosaica do sertão nordestino caminha pouco a pouco rumo à alegorização da vitória da inteligência humana sobre as forças irracionais da natureza (o vaqueiro não é veloz como a rês, mas a resgata através de uma “técnica” – o aboio – que denota sua inteligência); da mesma forma, no segundo soneto, a cidade descrita não é Amarante mas uma cidade arquetípica, um eldorado onde até as mágoas são motivos de riso. Não se chamasse Amarante e esse soneto poderia ser um hino de quase qualquer cidadezinha do interior (desconte-se a única e tênue referência concreta e individualizante do poema: “Entre três rios...”). Estes dois poemas ilustram, pois, como a mímesis dacostiana, coerente com suas raízes platônicas e românticas, submete-se ao imperativo da imaginação corretora, tomando o poeta como um demiurgo.

O Piauí das páginas de Da Costa e Silva é um eldorado onde as matas são sempre verdes e pulsantes de vida, onde o rio é sempre caudaloso e cristalino, onde o povo guarda uma pureza e uma ingenuidade ímpares. O motivo desse idealismo parece-nos ser dois, um de fonte literária e outro de fonte extraliterária. O motivo literário é o amplo lastro de influência romântica e simbolista que Da Costa e Silva recebera ao longo de sua formação literária, mormente dos autores de língua francesa (Verhaeren, Verlaine, Baudelaire e até mesmo Tristan Corbière e Jules Laforgue – como evidenciam os sonetos “Josafat” e “À Margem de um Pergaminho”), de Cruz e Sousa e Alphonsus de Guimaraens, a quem ele verdadeiramente reverenciava, além do português Antônio Nobre. O motivo extraliterário é uma tentativa de compensação psicológica; o poeta idealiza sua terra como forma de reagir contra os estereótipos que produziram uma imagem parcial e negativa de seu estado. Aventamos aqui este motivo extraliterário como mera hipótese que, para ser plenamente confirmada, necessitaria de uma investigação sobre a (ainda inédita) produção em prosa dacostiana, mormente sobre sua correspondência ativa. Se admitirmos, porém, essa hipótese como plausível, temos que reconhecer que a imaginação corretora que permeia grande parte da lírica dacostiana não se explica apenas como influência de leitura e concessão aos valores da época; trata-se de uma forma de resistência contra a estereotipia impingida pelo discurso do setor cultural dominante e uma tentativa – algo quixotesca – de solapar a primazia deste discurso.

Um cotejo entre os dois sonetos supracitados demonstra que quanto mais Da Costa e Silva se afasta do seu vezo “parnaso-impressionista” mais sua obra vai perdendo em rigor formal e plástico, embora, graças à imaginação corretora, afine o poder de moldar cenas arquetípicas. No primeiro soneto, a fluência musical, os enjambements providenciais e sugestivos (entre os versos 10 e 11, por exemplo, o enjambement reforça a significação latente dos versos, associando-se à ligeireza do cavalo), a sintaxe e a pontuação altamente funcional (veja-se, por exemplo, como os advérbios em “mente” precedidos de vírgula nos versos 11 e 13 engendram uma precisa harmonia rítmico-imagética), a plasticidade das imagens (um verdadeiro quadro impressionista, com a valorização da luz e suas sutis mutações e um apelo sinestésico latente), enfim, o perfeito domínio da forma que se entrevê em “O Aboio” não se repete em “Amarante”, que retoma um topos da tradição romântica sem lhe abrandar os clichês, como se vê em versos como “Terra para se amar com o grande amor que tenho” ou “Com seu povo feliz, que ri das próprias desgraças”.

Uma rápida observação no plano léxico dos dois poemas mostrará que o soneto “Amarante” não contém um só vocábulo aderente ao ethos piauiense como também nenhuma imagem que singularize Amarante ou o Piauí. Por outro lado, em “O Aboio” o sermo nobilis parnaso-simbolista vai cedendo espaço para vocábulos impregnados da realidade cotidiana do sertanejo piauiense. Claro, não basta o uso de termos e expressões regionalistas para constituir-se uma poesia arraigada a um ethos. Mas também o léxico é um componente importante na singularização de um povo. A cena de aboio ali descrita mostra com clareza a tensão entre representação naturalista e imaginação corretora que permeia muitos sonetos de Zodíaco e talvez mesmo da poética de Da Costa e Silva: é a luta entre um pendor intelectualista, detalhista e rigoroso que se choca com uma sensibilidade à flor da pele, imaginativa e de fundo popular. Fausto Cunha (apud SILVA,1997), a esse respeito, pronunciou-se: “ O poeta de ‘Sangue’ deu-nos uma obra forte e vivida, em que se conciliam as exigências de uma aristocracia estética e as impregnações de uma sensibilidade profundamente popular”. Um conhecido poema do autor confirma a sagaz afirmação de Fausto Cunha:


A moenda

Na remansosa paz da rústica fazenda,
À luz quente do sol e à fria luz do luar,
Vive, como a expiar uma culpa tremenda,
O engenho de madeira a gemer e a chorar.

Ringe e range, rouquenha, a rígida moenda;
E, ringindo e rangendo, a cana a triturar,
Parece que tem alma, adivinha e desvenda
A ruína, a dor, o mal que vai, talvez, causar...

Movida pelos bois tardos e sonolentos,
Geme, como a exprimir, em doridos lamentos,
Que as desgraças por vir sabe-as todas de cor.

Ai! dos teus tristes ais! Ai! Moenda arrependida!
– Álcool! Para esquecer os tormentos da vida
E cavar, sabe Deus, um tormento maior!


Neste clássico soneto – novamente de Zodíaco –, é perceptível como a simplicidade do motivo é submetida a um aparelho técnico rigoroso e polivalente. A acumulação de elementos figurativos, o colorido da melopéia, a hipertrofia de adjetivos (só na primeira estrofe encontramos 5 adjetivos e 3 locuções adjetivas) e a intenção moralizante (todo o descritivismo do soneto se encaminha para a chave de ouro “didática”) elevam um outrora prosaico engenho de madeira à categoria de monumento. Típica técnica do parnaso: pela acumulação quantitativa de recursos poéticos representar o banal como o inusitado e, sendo possível, extrair desse quadro uma lição moralizante (leia-se o Bilac do soneto “Velhas Árvores”).

Dilacerado, por razões biográficas e por formação intelectual, pela saudade de paraísos perdidos, o olhar de Da Costa e Silva sobre o Piauí não raras vezes se confunde com o olhar do turista deslumbrado ou com o espanto do cronista quinhentista que via no Brasil o eldorado. Essa visão se reflete, no plano estrutural na obra, conforme temos visto nos poemas transcritos, na opulência de recursos poéticos que o autor aciona[1]. Só uma linguagem vibrante, rica em recursos figurativos e revestida de uma melopéia wagneriana (veja-se boa parte dos poemas de Zodíaco), pode representar ficcionalmente a beleza tropical desse paradise lost.

Na ausência de um poeta épico em nossas plagas – houvera Leonardo das Dores, mas esse fora mal compreendido e rechaçado por seus contemporâneos e só agora volta, aos poucos, à cena –, Da Costa e Silva foi quem melhor elevou, até o início do século XX, no campo da poesia, à categoria de mito a paisagem e o homem piauienses. Neste sentido, ocupa um lugar especial na cultura piauiense não apenas pelas qualidades poéticas intrínsecas, mas por ter colaborado de forma decisiva na construção de uma forma de imaginário a que o piauiense recorre na busca de identificar-se.



[1] Para uma explanação da relação entre forma literária e estrutura social, que aqui vislumbramos em Da Costa e Silva, cf. Candido (2000).

[Continua...]

Comentários

Anônimo disse…
Viva o neoimpressionismo do Wanderson! Bravo! Vai longe rapaz!
A ironia, quando aliada ao anonimato, revela precisamente a índole de uma pessoa.
Anônimo disse…
Vai cara! dá mais uma esperneada verbal!
Anônimo disse…
Parabéns Wanderson! E você aí leitor? O que é capaz de dizer? Pode fazer uma análise que "impressione"?