H. DOBAL, LEITOR DE DA COSTA E SILVA: representação poética e desleitura [Parte05]

__________H. Dobal


H. DOBAL, LEITOR DE DA COSTA E SILVA:
representação poética e desleitura



por Wanderson Lima


[Continuação...]

IV. A DESLEITURA DE H. DOBAL


Tentamos configurar, nas seções II e III, como se dá o processo de representação ficcional nos dois poetas. Interessa agora mostrar como a obra de Dobal constitui-se, em parte, como uma desleitura da poética de Da Costa e Silva. Tentaremos explicar essa tese a partir das reflexões de Harold Bloom (1995, 2002), que serão sumariadas, brevemente, a seguir.

Parte significativa da obra de Bloom constitui-se num esforço de construir uma teoria psicoestética da poesia através da descrição do processo de influência. No entendimento do crítico americano, todas as críticas básicas de poesia têm oscilado entre a tautologia (o sentido do poema é ele mesmo) e a redução (o poema significa algo fora de si). Leitor nada ortodoxo de Nietzsche e Freud, ele propõe, então, que uma nova crítica[3] – denominada antitética – deva se fundar no pressuposto de que todo poema se liga a outro(s) e só é explicável por esse(s) outro(s). Bloom nos convida a superar a idealização de pensar em qualquer poeta como um ego autônomo; para ele, “todo poeta é um ser colhido numa relação dialética (transferência, repetição, erro, comunicação) com outro poeta ou poetas” (2002, p. 55): um poeta é uma resposta a outro assim como somos, em grande parte, uma resposta à nossa família. Entre os “poetas fortes”[4], os poemas são concretizações da “angústia da influência”[5] – “descargas de motores em resposta ao aumento de excitação da angústia da influência” (2002, p. 57), como diz metaforicamente. Essa influência se dá por um ato de “leitura distorcida” ou “desleitura” em relação ao(s) poema(s) do precursor. Isso não significa dizer que o efebo – denominação do poeta influenciado – tenha consciência dessa desleitura; como salienta Bloom (2002, p. 87), “o precursor jamais é absorvido como parte do superego (o Outro que nos comanda), mas como parte do id”.

O leitor que porventura não conhece as teses de Harold Bloom deve estar a considerar demasiado vago os termos “leitura distorcida” e “desleitura” (misreading). Bloom procura detalhá-lo mostrando que essa atitude revisionista pode se manifestar de várias formas, das quais ele descreve e opera com seis: clinamen, tessera, kenosis, daemonização, askesis e apophrades. Para o crítico, estas seis proposições revisionárias “que distorcem ou metamorfoseiam precursores” (1995, p. 98) têm idêntica função, nas relações intrapoéticas, que os mecanismos de defesa na vida psíquica de todos nós.

Como nosso foco central aqui não é resenhar a teoria da influência bloomiana, limitamo-nos a falar apenas da forma de “desleitura” que nos interessa, a tessera. Esta representa “a tentativa de qualquer poeta que vem depois de convencer-se (e a nós) de que a Palavra do precursor estaria gasta se não redimida como uma Palavra recém-enchida e ampliada do efebo” (2002, p. 97); tessera é, portanto, “uma ‘completude’ que é tanto uma apropriação quanto o é um desvio revisionário” (idem, p. 23). Bloom detecta esta forma de desleitura, por exemplo, na obra de Wallace Stevens em relação aos seus precursores românticos americanos; alega, por exemplo, que a elegia The Owl in the Sracophagus, de Stevens, “é mais bem lida como uma grande tessera em relação a The Sleepers” (idem, p. 95), de Walt Whitman. Acreditamos que haja casos semelhantes entre Da Costa e Silva e H. Dobal.

Os poetas consagrados do Piauí à época em que Dobal começou a escrever eram Celso Pinheiro, Martins Napoleão e Da Costa e Silva. O intimismo pessimista no primeiro e religioso no segundo parecem ter sido de quase nenhuma significância na formação poética do poeta; no entanto, do telurismo idealista de certos poemas de Da Costa não podemos afirmar o mesmo. Consta em Zodíaco (1917) uma seção, a mais famosa talvez, denominada “Minha Terra” que muito provavelmente serviu como pedra-de-toque para Dobal. O mesmo se pode dizer de dois sonetos dacostianos encontrados em Sangue (1908), os popularíssimos “Saudade” e “Rio das Garças”. É notório que, enquanto Da Costa e Silva recebeu a alcunha de “poeta da saudade”, Dobal, um poeta que tem na memória um dos fulcros de sua poesia, jamais se vale do vocábulo saudade, nem se interessa em explorar um sentimento nostálgico que não tenha valor coletivo e apelo cívico. A nostalgia faz com que o amarantino erija uma recordação corretiva do passado que traz como resultado a reatualização do mito do Eldorado em terras piauienses; já o teresinense lida com a memória social porque professa uma esperança no poder corretivo do passado e na força da tradição contra a barbárie e o individualismo moderno.

Assim, dito de forma direta, Da Costa e Silva serviu a Dobal não como modelo para repetir – mas para reconsiderar e subverter (desler ou corrigir criativamente, nos termos de Bloom). H. Dobal emula com Da Costa e Silva por ter consciência de que este, antes dele, fora quem melhor fixara em nosso imaginário uma representação, via poesia, do ethos piauiense[6]; essa emulação dá-se por um processo de desidealização que H. Dobal impõe ao fazer poético, embora, no que se refere à função da poesia, Dobal seja idealista como Da Costa, por mais diverso que seja o motivo da idealização em ambos, uma vez que sua prática poética, não foge à tópica de extração romântica do poeta como consciência superior. Em Da Costa, a consciência superior do poeta está no fato de ele ser o demiurgo criador-transfigurador de realidades, o criador de fantasias que embelezam a realidade presente. Em Dobal, ao contrário, o poeta é o ser de consciência superior porque ele é o agente autorizado a falar em nome de uma comunidade, é o guardião da memória coletiva – este baú das virtudes cívicas e morais. No entanto, ambos, direta ou indiretamente, querem insuflar, nos conterrâneos, o amor à terra.

A desidealização de Dobal, em relação ao poeta amarantino, não se traduz pois em termos de recusa ou menoscabo pelos mitos localistas engedrados pelo poeta da saudade; traduz-se em termos de incompletude e falta de dureza (ou excesso de idealização) por parte do precursor. Dobal responde a estes “defeitos” do estro dacostiano impondo o metonímico ao metafórico, a concisão ao ornamentalismo, o realismo poético (“realismo fenomênico” para Ribas) à idealização poética, a consciência histórica ao modelamento arquetípico[7]. Freqüentemente, o eu-poético dobalino, rechaçando a gramática dacostiana, ironiza sutilmente o ornamentalismo e o idealismo poético (veja-se, logo adiante, “O Rio”); em outros, menos comuns, a ironia é direta (leia-se, de A Serra das Confusões, “O Poeta”). Tomemos exemplos:

A Cantiga

Movendo ao rude engenho a roda grande,
Cantam na lida os homens da lavoura,
Aos crebros sons da moenda rugidora,
Enquanto a vida à luz do sol se expande.

A mole férrea, sem que o peso abrande,
Gira veloz, como se próprio fora
O humano afã da força propulsora,
Que faz com que ela, assim, ande e desande...

Cantam os homens, no auge da labuta,
E a roda, sem parar, gira e mastiga
As raízes que apura à força bruta...

Cantai, homens de Deus! que essa cantiga
Vos dá novos alentos para a luta
E quem luta a cantar não tem fadiga!

(Da Costa e Silva. In: Zodíaco. Poema da seção “Minha Terra”)


O Orador


No trigéssimo ano
de sua ignorância,
Inácio Peixoto
se fez orador.
Falava nas festas.
Batizados, casamentos,
enterro: eram palavras
de vária sorte,
enfeitando a vida,
enfeitando a morte.
E a sua arte adquirida
se cobriu de glória,
quando em nome do povo,
saudou comovido
o ex-digno governador do Estado.

(H. Dobal. In: A serra das Confusões)


Se o nosso trabalho comparativo se resolvesse em termos de estilo, um simples olhar sobre os dois poemas já nos descredenciaria, tamanha é a distância de estilo entre os poetas. Mas é preciso lembrar que estamos trabalhando com uma teoria psicoestética e que, como alerta o próprio Bloom (1995), angústia da influência é diferente de angústia do estilo:

Já que influência poética é necessariamente desapropriação, uma tomada ou feitura errônea da herança, é de se esperar que tal processo de má formação ou desinterpretação vá, no mínimo, produzir desvios de estilo entre poetas fortes (BLOOM, 1995, p. 31).

Ao transcrevermos os poemas acima pretendíamos demonstrar como A Serra das Confusões (1978) é, em sua totalidade, um caso de tessera em relação aos poemas da seção “Minha Terra”, de Zodíaco. O quadro comparativo que esboçamos a seguir é válido, portanto, não apenas para os dois poemas. Visa mostrar como Dobal complementa antiteticamente Da Costa e Silva.

“A Cantiga”
- Tensão entre mímesis e imaginação corretora
- Intelectualismo e ornamentação
- Arquetipização
- Tom sublime, fundo moralizante

“O Orador”
- Despersonalização, recusa da phantasia em prol da mímesis
- Despojamento, recusa da estilização, condensação dos recursos poéticos
- Particularização
- Tom irônico, amoralismo

Perceba-se que é exatamente da questão da forma de mímesis que deriva todas, ou quase todas, as outras características. É o tipo de mímesis adotada por Dobal que levará à despersonalização, à condensação dos recursos poéticos etc. Perceba-se também que o quadro enfatiza apenas as diferenças, mas não devemos esquecer que tudo parte de uma desapropriação. O fim tanto de Dobal quanto de Da Costa é descrever o ethos de um povo (lembremos que não estamos falando apenas dos dois poemas em discussão).

Vejamos agora outros dois poemas, um de cada autor:

Rio das Garças

Na verde catedral da floresta, num coro
Triste de cantochão, pelas naves da mata,
Desce um rio a chorar o seu perpétuo choro...
E o amplo e fluido lençol das lágrimas desata...

Caudaloso a rolar, desde o seu nascedouro,
Num rumor de orações no silêncio da oblata,
Ao sol – lembra um rocal todo irisado de ouro,
Ao luar – rendas de luz com vidrilhos de prata.

Alvas garças a piar, arrepiadas de frio,
Seguem de absorto olhar a vítrea correnteza.
Pendem ramos em flor sobre o espelho do rio...

É o Parnaíba, assim carpindo as suas mágoas,
– Rio da minha terra, ungido de tristeza,
refletindo o meu ser à flor móvel das águas.

(Da Costa e Silva. In: Sangue)


O Rio

Meu Parnaíba feito de lembranças
Não corre mais entre barrancos.
É um fio na memória um rio esgotado
No recreio de muitas manhãs,
Rio risco rio tatuado
Na deriva de um dia perene.

Meu rio turvo se depositando
Num claro engano que não se renova,
E descendo suas águas pelo nunca mais
De outras infâncias ensolaradas.

Meu rio largo de água doce de brejo
Jaz o seu curso entre coroas e canaranas,
E de outros meninos consumidos
No sol de suas águas
Num delta escuro dividido
Rola o dia perene.

(H. Dobal. In: O Tempo Conseqüente)


Entre a publicação de “Rio das Garças” e “O Rio” há um lapso de pouco mais de meio século e é evidente que, nesse espaço de tempo, o Parnaíba não é o mesmo. Ainda assim, seria ingenuidade justificarmos as diferenças significativas entre esses poemas somente por esse viés. O descritivismo de Da Costa e Silva jamais sói adequar-se ao ideal de impassibilidade descritiva defendida pelos parnasianos e levada a cabo por um Vicente de Carvalho, por exemplo. O projeto mimético dacostiano não visa ao naturalismo, nem ao documentalismo de valor sócio-histórico. Em Da Costa e Silva, a paisagem exterior interioriza-se e identifica-se com o “eu” do poeta; dessa forma, não raras vezes, ao falar da natureza, o poeta está a falar de si mesmo. E é este fator que nos faz insistir que o poema dacostiano – isso naturalmente vale para outros poetas – é a concretização da tensão entre duas vontades: a de vivificar aos nossos olhos o objeto e a de expressar as nuanças hipersensíveis de seu “eu”.

Uma rápida leitura em “Rio das Garças” pode comprovar o que está dito acima. O amplo leque de metáforas litúrgicas humaniza e mesmo sacraliza a natureza, que se torna a igreja enquanto o rio, o fiel dessa igreja. Intensificado e transfigurado pela hipertrofia de metáforas e por uma melopéia rica em alusões, o Parnaíba faz-se belo, caudaloso e vívido, mas ainda assim... triste, pois que vive “carpindo suas mágoas”. Como o poeta. Sem incorrer em exageros, o poema pode ser lido como uma alegoria das vicissitudes do “eu”, bastando que no lugar de rio se coloque “eu” e se redirecione a interpretação das metáforas litúrgicas que pontuam o soneto. Dir-se-ia, então, que o poeta fala de si neste soneto e não no rio Parnaíba? Diríamos que fala dos dois, que uma leitura atenta a este e a outros poemas “piauienses” de Da Costa e Silva deve levar em consideração o jogo das forças da mímesis em tensão com a arbitrariedade e a subjetividade da phantasia.

E o Parnaíba de Dobal? Não é preciso muito esforço para se perceber que ele se constitui no avesso do Parnaíba de Da Costa e Silva. E muito embora Dobal se imiscua na descrição do rio – impregnado de memória da infância, o que dá o tom lírico do poema –, ele não faz do texto um meio de confissão de suas vicissitudes. Há na poesia dobalina uma consciência civil, uma convicção de que a poesia é útil à comunidade enquanto manancial, dos mais privilegiados, da memória coletiva – o que o afasta tanto do confessionalismo egocêntrico quanto do intelectualismo formalista. Reside neste ponto uma diferença essencial entre os dois poetas: para Dobal, a poesia é o narrar-cantar do fazedor borgiano; para Da Costa e Silva, é o cantar que se impregna do narrar, porém sem atingir uma síntese dialética.

Na tessera, lembra Bloom (2002, p. 87), o poeta completa dialética e criativamente o seu precursor, “lendo o poema-pai de modo a reter seus termos, mas usando-os em outro sentido, como se o precursor não houvesse ido longe o bastante”. “O Rio”, mantendo elementos do poema-pai, “Rio das Garças”, busca radicalizá-lo arrefecendo o colorido da linguagem e o alto grau de subjetivação. O rio “caudaloso” de Da Costa e Silva exigia-lhe uma linguagem igualmente caudalosa; o rio “risco” de H. Dobal só agrega adjetivos magros (esgotado, risco, tatuado, turvo), sintaxe magra (sem torneios que chamem a atenção sobre si), melopéia magra (exata, mas não orquestral).





[3]
A crítica antitética de Bloom não foge ao enredamento que ele denuncia. Ela opera com a redução, já que nele um poema é sempre uma reposta a outro, isto é, um poema se reduz a outro.
[4] Na versão agonística da história da literatura ocidental narrada por Bloom, a noção de poeta forte (strong poet) é basilar. Diz o crítico: “Meu interesse é apenas por poetas fortes, grandes figuras com a persistência de lutar com seus precursores (...). Os talentos fracos idealizam; as figuras de imaginação capaz apropriam-se” (2002, p. 28).
[5] Bloom, contrariando Freud, desconsidera a sublimação, entendendo-a como concessão otimista do pai da psicanálise. Daí considerar o poema como “angústia realizada”, como “a melancolia do poeta por sua falta de prioridade” (2002, p. 54)
[6] A emulação de Dobal com Da Costa e Silva encontra-se não apenas, como supõe a teoria de Bloom, recalcada no inconsciente. Dobal é explícito em documentário produzido por Douglas Machado, ao afirmar que Da Costa fez “belos poemas sobre o Piauí, com motivos piauienses, mas (...) não se pode dizer que seja um poeta piauiense” ao passo ele, Dobal, produz poemas piauienses. Como não sentir, sutilmente implícita na fala de Hindemburgo, a reprimenda do efebo que se desvia do pai-precursor, corrigindo-o criativamente?
[7] Por estamos trabalhando sob a égide de uma teorização psicoestética, não enfatizamos as motivações históricas das diferenças de estilo entre H. Dobal e Da Costa e Silva, que sem dúvida são reais e significativas.


[Continua...]

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