H. DOBAL, LEITOR DE DA COSTA E SILVA: representação poética e desleitura [Parte04]

__________H. Dobal


H. DOBAL, LEITOR DE DA COSTA E SILVA:
representação poética e desleitura


por Wanderson Lima


[Continuação...]

III. REPRESENTAÇÃO FICCIONAL EM H. DOBAL


Um aspecto que chama a atenção de quem lê a poesia de Dobal, ainda que sem compromissos críticos, é a sua capacidade – surpreendente para uma obra de essência lírica – de referencialidade cultural. Não há para este poeta uma poesia desvinculada de um extrato social, histórico-geográfico. Em seus melhores momentos, esta poesia não dissocia consciência estética e consciência ética. Não por acaso, pois, Péricles da S. Pinheiro (apud Dobal, 1997) qualificou o modus operandi da poética dobalina de “realismo poético” e Ranieri Ribas (2003) de “realismo fenomenológico”. Estamos diante de uma lírica que não imita estados de ânimos (stasis), como quer Merquior (1997), mas elementos tangíveis da cultura humana e física de um espaço definido.

Ainda a este respeito, Ribas (2003, p. 06) ressalta em Dobal “a preferência pela cousa ordinária em detrimento da metafísica”, asseverando que o poeta engendra uma “poesia fenomênica”, isto é, “não uma poesia de concepções sobre objetos mas um inventário de objetos e vivências mundanas”. Ressalta também a função épica da poesia dobalina, que se manifestaria em “faturas líricas, ou melhor, fraturas líricas”; o eu-poético dobalino, entende o crítico, “varia seus humores a fim de representar todas as facetas do espírito de um povo, seja pelo drama da escassez em O Tempo Conseqüente, seja pelo testemunho crônico-anedótico dos causos e da gente comum em A Serra das Confusões” (idem, p. 07).

A interpretação de Ribas deslocou o eixo das exegeses de Dobal, inserindo-o numa nova perspectiva. No entanto, na escolha do aporte teórico, o crítico incorreu em duas ancoragens bastante questionáveis. A primeira se deu na escolha da teoria dos gêneros; ao apontar a presença de uma função épica na poesia de Dobal, Ribas recorre ao rigorismo imobilista da teoria dos gêneros de Emil Staiger[2], e deixa implícito, assim, uma concepção redutora da lírica. Da mesma forma, o crítico concebe a existência de uma transparência na transposição simbólica da realidade pela mímesis poética; assim, ele admite que a poesia de Dobal capta “a cousa em si, positiva e fenomênica” (idem, p. 05), independente de esquemas conceituais ou mediações simbólicas. Nesta perspectiva a mímesis poética torna-se mera duplicação do mundo, e não sua recriação.

De nossa parte, antes entendemos que H. Dobal seja o que Jorge Luis Borges (2000), resgatando o sentido etimológico do termo poeta, denomina de fazedor (“hacedor”); o fazedor na noção borgeana incorpora à expressão lírica a narratividade, fundindo inclinações pessoais à alteridade pressuposta no ato de narrar; é cantador e um contador, um sujeito idiossincrático e um aedo: alguém que “profere agudas notas líricas”, mas também “narra uma história” (2000, p. 51). O fazedor Dobal, ainda que lírico em essência, pensa o sujeito da criação numa perspectiva oposta ao egocentrismo que atravessa a lírica moderna do romantismo às vanguardas do século XX; para ele, o sujeito da criação, ao representar poeticamente uma dada realidade, funda-se num rigoroso senso de alteridade: expressa-se não só para mas por uma comunidade. Com isso, Dobal logra atingir uma façanha desdenhada pela maior parte dos grandes líricos do século XX: manter a força comunicativa da poesia, sem lhe macular a densidade cognitiva ou a qualidade estética. Neste sentido, encontramos uma continuidade entre o projeto poético de Da Costa e Silva e o H.Dobal: a exigência de que a poesia não perca sua ligação com o ethos social, uma suposição de que a expressividade do texto (e mesmo as experimentações) não transforme o poema numa jóia mallarmaica de intransigência comunicativa.

Ilustremos o que foi dito acima com uma análise em um ou dois poemas típicos do estro dobalino. O objetivo não é levar a cabo uma análise semântico-formal extensiva dos poemas mas apenas aferir como o esforço mimético do poeta não se limita a catalogar elementos da paisagem (no caso, da paisagem nordestina) nem fazer uso de regionalismos; o esforço mimético empreendido por Dobal é o que singulariza sua gramática e o diferencia dos poetas cordelistas e da representação pitoresca dos poetas regionalistas. O que o particulariza é o modo como ele nos põe diante dessa representação: tal como no Graciliano Ramos de Vidas Secas, Dobal busca uma linguagem em nível da paisagem, isto é, uma linguagem alicerçada na tentativa de aproximação entre signo e realidade. Este aspecto da mímesis em Dobal já fora enunciado por Ranieri Ribas (2003, p. 09), que fala da “poética isomórfica do vocábulo à imagem”. Mais cautelosos, preferiríamos que Ribas houvesse falado em aproximação isomórfica, já que a literatura, como representação simbólica, numa reproduz o real de maneira transparente. Vejamos os poemas:

Réquiem

Nestes verões jaz o homem
sobre a terra. E a dura terra
sob os pés lhe pesa. E na pele
curtida in vivo arde-lhe o sol
destes outubros. Arde o ar
deste campo maior desta lonjura
onde entanguidos bois pastam a poeira.

E se tem alma não lhe arde o desespero
de ser dono de nada. Tão seco é o homem
nestes verões. E tão curtida é a vida,
tão revertida ao pó nesta paisagem
neste campo de cinza onde se plantam
em meio às obras-de-arte do DNOCS
o homem e outros bichos esquecidos.


Relatório

Nas feiras de Pernambuco
o gado pé-duro do Piauí
baixa o preço da carne.

Não é mais boi
são tassalhos
e a faca na carne
corta macia.

Macia era a vida
sob as faveiras
antes da faca
dividir o boi
em novas glebas.

Antes que o tempo
fosse cortado
e o gado bravo
fosse levado
no macio andar
dos caminhões.

Boi morto couro
Entregue às varas.
Mais outros virão
do Piauí mais pobre
do que estes bois
de poucas arrobas.


Os dois poemas transcritos, da obra de estréia O Tempo Conseqüente (1966), exemplificam recursos estilísticos recorrentes da mímesis poética de H. Dobal. De forma bem resumida, podemos salientar que se trata de uma poética anti-ególatra, que propõe um deliberado distanciamento de si com o fito de, na representação ficcional, identificar-se com a alteridade captada nesta distância. Daí que entre seus traços possamos identificar:

i) despersonalização; recusa de uma lírica interiorizada e confessional com o fito de, pela recusa da imaginação corretora, captar o ethos da cultura representada.

ii) condensação dos recursos poéticos: rarefação das rimas, contenção simbólico-metafórica, esgotamento semântico dos vocábulos, abolição de sinais de pontuação com o fito de ambiguizar o discurso sem recorrer à ornamentação retórica (cf. LEOPOLDINO, 2003), estrofes formadas de palavras soltas em vez de frases gramaticais tradicionais e preferência por tropos como metonímia, ironia, elipse e zeugma, indicadores de uma escritura econômica.

iii) recorrência ao que Jakobson (1970), em seu texto fundamental sobre a gramática da poesia, denominou de “figura de gramática”: o uso de procedimentos gramaticais como constituinte da eficácia estética do poema numa escala tão ou mais importante que os tropos ou figuras de linguagem.

iv) indissociação entre consciência estética e consciência ética, entre memória pessoal e memória coletiva, entre canto e narrativa. Nem poeta lírico nem épico: um fazedor, no sentido borgeano do termo.

v) recusa do intelectualismo e da afirmação autoral pela recusa da estilização, do efectismo. O poema tem de soar natural, quase como se não fosse – e sabemos que é – fruto de um labor dos mais extenuantes.





[2] Resumidamente, as críticas mais comuns à teoria de Staiger são: 1) ao tratar do lírico, Staiger toma como transistórico o que é válido apenas no âmbito do alemão; 2) equivoca-se igualmente ao engendrar “uma teoria dos gêneros que toma a tríade das atitudes fundamentais nos gêneros esquematizados como permanentemente preexistente nas idéias fundadas no ser do homem”. (Hempfer apud Costa Lima, 2003)


[Continua...]

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