Cinema Iraniano II - Dez





INTERLÚDIO, por Wanderson Lima
escritor e professor


CINEMA IRANIANO II - DEZ


Jean-Luc Godard teria dito que o cinema começa com Griffith e termina com Kiarostami. O que dá sentido a esta provocação de Godard parece está no fato de tanto o cineasta americano quanto o iraniano se preocuparem com os meios expressivos do cinema, buscando alargar suas potencialidades.

“Dez” (Dah / Ten, Irã/ França, 2002), embora possa ser apreciado sem necessidade de um debruçar-se sobre os problemas da linguagem do cinema, será mais bem entendido se tivermos em mente esse caráter experimental, de sondagem dos limites da representação cinematográfica, que marca estilo de Abbas Kiarostami e o leva, filme a filme, a uma tentativa de repensar os meios expressivos da sétima arte e o papel do diretor como regente do filme.

Como sugere o título, a história, se assim podemos chamar o delgado mote que sustenta a narrativa, é contada em dez blocos, nos quais uma atriz (Mania Akbari, também cineasta) dialoga, dentro do carro, com diferentes pessoas. Todos os diálogos têm um núcleo comum: a situação da mulher no Irã. A despeito das peculiaridades culturais – afinal estamos num mundo globalizado – os dramas da mulher iraniana, ao menos daquelas que o filme mostra, de condição social média ou elevada, não diferem muito dos dramas vividos pelas ocidentais – sejam brasileiras, americanas ou francesas. Relacionamentos frustros, filhos malcriados, embates com o mundo machista, crise de fé religiosa são os componentes dessa via crucis feminina. Claro, não é na denúncia da condição feminina que este filme de Kiarostami é inovador.

Inovador é o modo como Kiarostami narra a história, reduzindo a linguagem do cinema, como disse Jean-Claude Bernardet, a um “minimalismo franciscano”. São apenas duas câmeras, digitais, acopladas no interior de um carro, uma voltada para a motorista, outra voltada para seu (sua) interlocutor(a). Nada de equipe de filmagem: nenhuma iluminação especial, nenhum de cenário pré-concebido (a motorista não tinha um roteiro pré-estabelecido, ela simplesmente flanava pelas ruas de Teerã). Não havia, também, um roteiro rígido; Kiarostami ficava no banco detrás do carro (as duas câmeras, claro, não permitiam que ele fosse visto) e ditava o diálogo para os atores.

Quem, porém, assiste ao filme fica impressionado com os efeitos artísticos e dramáticos que o cineasta foi capaz de tirar de tão parcos meios. O primor da montagem – não um primor no sentido rigorosamente técnico, mas sobretudo por sua capacidade de gerar expectativas e produzir situações ambíguas – eliminou a possibilidade iminente de tédio, já que se tratava de uma história circular, sem peripécias. Nosso voyerismo de espectador, graças às opções tomadas pelo diretor, desvia-se de uma atitude emotiva (acompanhar o desenrolar de uma aventura) para uma atitude de sondagem intelectual (construir, com a informação de cada bloco, a imagem da protagonista ou, numa interpretação mais alegórica, refletir a cada bloco sobre uma faceta do(s) drama(s) da condição feminina).

Uma das propostas de Abbas Kiarostami, segundo suas próprias palavras, fora eliminar o diretor do filme, fazer um filme sem diretor. Nada mais parcial do que esta afirmação, porque, se por um lado, é indubitável que a estrutura de “Dez” reduz o poder de intervenção do diretor, por outro lado, torna esta limitada intervenção mais fundamental ainda. A montagem retoma a posição soberana que tivera no cinema russo, com Eisenstein e Pudovkin – não, claro, pelos mesmos motivos. É a montagem que irá transformar uma matéria semibruta – diálogos corriqueiros (embora artificiais) registrados em enquadramentos estáticos – em arte.

Como notaram Patrice Boulin e Jean-Claude Bernardet, “Dez”, em sua economia de meios, dá um passo além na renovação da linguagem cinematográfica: seu uso de câmeras fixas, sem alterações de enquadramento, produzem uma estetização das câmeras de vigilância. Kiarostami vale-se dessas câmeras não como meio de controle policial, mas com função estética, dando sentido artístico às imagens. Neste ponto, ele é inteiramente pós-moderno: qual um skatista, que transforma o espaço urbano funcional em uma “selva de pedras” cheia de aventuras, o diretor de “Dez” transmuda uma instância de controle num meio artístico. O objetivo de ambos é o mesmo: dar valor simbólico a objetos frios e funcionais. Porém, a comparação para por aí, pois um skatista de rua quer apenas se divertir, enquanto a proposta de Kiarostami, aparentemente modesta, tem um fundo profético. Num futuro não muito distante – talvez isso já esteja ocorrendo! – as câmeras de vigilância podem passar a ter uma função até então imprevista. A beleza, afinal, pode brotar de onde menos se espera; o fim das criações humanas pode ser bem distinto daquele que se pensou inicialmente.

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