- Publicado em amálgama #6, março de 2008
A TRILHA DE CIPRIANO: TENSÃO E POLIFONIA
por Alfredo Werney
III
Um aspecto importante na construção de Cipriano são as personagens. O filme se desenvolve, basicamente, em torno de três: Vicente, Bigail e Cipriano. As rezadeiras desempenham funções sonoras e visuais que também são importantes na dramaturgia. São filmadas com certo caráter documental, em contraposição a poeticidade inerente aos outros personagens.
A construção dos personagens é marcada pelo contraste. Não só dramático como também sonoro. Vicente é um ser complexo: seus movimentos são fluidos, seu referencial audiovisual do mundo é desfigurado. Sua dramatização expressionista e sua emissão de timbre e palavras que buscam efeitos próprios criam um universo muito particular. Vicente busca a vida, deste modo seu mundo está cercado de sons. Lembremos do acordeon que carrega: um instrumento de movimentos fluentes, de sons e acordes aleatórios. O acordeon de Vicente alarga o universo de atuação de um objeto sonoro. Funciona na plástica da narração, na trilha sonora e na cenografia, além de representar o próprio personagem. A água é o abrigo de Vicente, o lugar onde sublima a falta da mãe e onde renasce. Há momentos do filme que ele recompõe o ritual do batismo: com as mãos molha sua cabeça e celebra a vida. Em contraposição termina a cena recompondo o ritual da crucificação de Cristo: com os braços abertos e estendidos.
Cipriano é marcado pelo silêncio. Seu nome é uma referência à dualidade Bem e Mal que envolve São Cipriano, símbolo espiritual que representa antagonismos. Ao contrário de Vicente, que celebra a vida, Cipriano sonha e busca a morte. Seus movimentos são contidos e o seu silêncio é mortal. Geralmente ele é filmado em câmera alta (plongé) ou câmera distanciada. À medida que se aproxima da morte, seu rosto é filmado em primeiríssimos planos. Embora pai de Vicente, a aproximação dos dois só se dá nos últimos sonhos, pois o filho guarda certo rancor edipiano dele.
Dentro deste mundo tomado por antagonismo dramáticos e musicais, Bigail simboliza equilíbrio. Observemos no quarto sonho (Cemitério) uma resumida canção cantada à capela pela personagem:
“Anjo caído do céu
Anjo sem asas de anjo
Cai triste do céu de fogo
Cai triste do céu meu anjo”
A voz nessa seqüência está em off, ou seja, o som não corresponde com a imagem do ator que dramatiza. O plano no espaço pictural mostra uma mão já marcada pelo percurso do tempo. A iluminação difusa e os dois anéis simbolizam a dualidade do mundo do personagem. Os quatro pequenos versos citados resumem a tônica do discurso cinematográfico de Douglas. As imagens elucidadas pelo texto remontam o mito da queda do anjo de luz. Coloca-nos em um maniqueísmo: o mundo das sensações (dos transgressores) e o mundo divino (de Deus e seus seguidores). A Terra e o Céu em outros termos.
Há um choque de densidade sonoro-dramática bem construída: a suavidade da voz de Bigail (estabilidade) com as explosões vocais e a forte entonação de Vicente (a instabilidade). A linha melódica entoada por Bigail percorre análogo caminho das imagens: do agudo, que é a dimensão superior (o Céu), para o grave, que é a dimensão inferior (a Terra).
O Êxodo da família de Cipriano é narrado por Vicente. Interessante é percebermos o acentuado contraste entre a narração linear e lúcida do personagem e a dramaturgia da obra como um todo. É o combate do espírito apolíneo (a fala que narra) com o espírito dionisíaco (a loucura de Vicente e as alucinações de Cipriano). Esse aspecto do filme revela uma visão de mundo cambiante: a convivência, ao mesmo tempo, com um mundo racional e com um mundo religioso.
O diretor concebe a linguagem verbal em seu trabalho como elemento de expressão plástica, textura dramática. Não é um simples meio de transmitir o sentido das ações e dos sentimentos humanos. A textura da música é compatível com toda a plástica da obra. Observemos a relação entre narração e a dramaturgia vocal: o texto do filme é entoado por um personagem que narra em primeira pessoa do singular. Assim a textura da narrativa é monofônica, tem apenas um aspecto sonoro. Por outro lado esta narração é entrecruzada por uma polifonia vocal (as rezas, os aboios e os diálogos), o que provoca uma dissincronia. Esse efeito é muito importante para acrescentar informações ao filme. Mostra-nos que Cipriano, mesmo trancado em seu mundo silencioso, vive perturbado pelas tensões do universo. Ainda nos remetendo a tal efeito, percebe-se que ele provoca uma alteração no tom intimista e confessional de Vicente, o narrador. Este procedimento muda o sentido da recepção sonora do interlocutor. Como ouvimos várias vozes ao mesmo tempo, a voz do narrador não tem a mesma projeção e autoridade. Na própria essência do coro está a coletividade, que é mais densa e impõe mais autoridade. Há um momento, em “Procissão” onde a voz de Vicente é nitidamente tomada pelo coro religioso. A música, densas harmonias de teclado, pouco a pouco toma espaço e cobre o coro da procissão. Percebamos a significativa gradação: do individual ao coletivo, do coletivo ao poético, ao indefinível.
[Continua...]
A TRILHA DE CIPRIANO: TENSÃO E POLIFONIA
por Alfredo Werney
III
Um aspecto importante na construção de Cipriano são as personagens. O filme se desenvolve, basicamente, em torno de três: Vicente, Bigail e Cipriano. As rezadeiras desempenham funções sonoras e visuais que também são importantes na dramaturgia. São filmadas com certo caráter documental, em contraposição a poeticidade inerente aos outros personagens.
A construção dos personagens é marcada pelo contraste. Não só dramático como também sonoro. Vicente é um ser complexo: seus movimentos são fluidos, seu referencial audiovisual do mundo é desfigurado. Sua dramatização expressionista e sua emissão de timbre e palavras que buscam efeitos próprios criam um universo muito particular. Vicente busca a vida, deste modo seu mundo está cercado de sons. Lembremos do acordeon que carrega: um instrumento de movimentos fluentes, de sons e acordes aleatórios. O acordeon de Vicente alarga o universo de atuação de um objeto sonoro. Funciona na plástica da narração, na trilha sonora e na cenografia, além de representar o próprio personagem. A água é o abrigo de Vicente, o lugar onde sublima a falta da mãe e onde renasce. Há momentos do filme que ele recompõe o ritual do batismo: com as mãos molha sua cabeça e celebra a vida. Em contraposição termina a cena recompondo o ritual da crucificação de Cristo: com os braços abertos e estendidos.
Cipriano é marcado pelo silêncio. Seu nome é uma referência à dualidade Bem e Mal que envolve São Cipriano, símbolo espiritual que representa antagonismos. Ao contrário de Vicente, que celebra a vida, Cipriano sonha e busca a morte. Seus movimentos são contidos e o seu silêncio é mortal. Geralmente ele é filmado em câmera alta (plongé) ou câmera distanciada. À medida que se aproxima da morte, seu rosto é filmado em primeiríssimos planos. Embora pai de Vicente, a aproximação dos dois só se dá nos últimos sonhos, pois o filho guarda certo rancor edipiano dele.
Dentro deste mundo tomado por antagonismo dramáticos e musicais, Bigail simboliza equilíbrio. Observemos no quarto sonho (Cemitério) uma resumida canção cantada à capela pela personagem:
“Anjo caído do céu
Anjo sem asas de anjo
Cai triste do céu de fogo
Cai triste do céu meu anjo”
A voz nessa seqüência está em off, ou seja, o som não corresponde com a imagem do ator que dramatiza. O plano no espaço pictural mostra uma mão já marcada pelo percurso do tempo. A iluminação difusa e os dois anéis simbolizam a dualidade do mundo do personagem. Os quatro pequenos versos citados resumem a tônica do discurso cinematográfico de Douglas. As imagens elucidadas pelo texto remontam o mito da queda do anjo de luz. Coloca-nos em um maniqueísmo: o mundo das sensações (dos transgressores) e o mundo divino (de Deus e seus seguidores). A Terra e o Céu em outros termos.
Há um choque de densidade sonoro-dramática bem construída: a suavidade da voz de Bigail (estabilidade) com as explosões vocais e a forte entonação de Vicente (a instabilidade). A linha melódica entoada por Bigail percorre análogo caminho das imagens: do agudo, que é a dimensão superior (o Céu), para o grave, que é a dimensão inferior (a Terra).
O Êxodo da família de Cipriano é narrado por Vicente. Interessante é percebermos o acentuado contraste entre a narração linear e lúcida do personagem e a dramaturgia da obra como um todo. É o combate do espírito apolíneo (a fala que narra) com o espírito dionisíaco (a loucura de Vicente e as alucinações de Cipriano). Esse aspecto do filme revela uma visão de mundo cambiante: a convivência, ao mesmo tempo, com um mundo racional e com um mundo religioso.
O diretor concebe a linguagem verbal em seu trabalho como elemento de expressão plástica, textura dramática. Não é um simples meio de transmitir o sentido das ações e dos sentimentos humanos. A textura da música é compatível com toda a plástica da obra. Observemos a relação entre narração e a dramaturgia vocal: o texto do filme é entoado por um personagem que narra em primeira pessoa do singular. Assim a textura da narrativa é monofônica, tem apenas um aspecto sonoro. Por outro lado esta narração é entrecruzada por uma polifonia vocal (as rezas, os aboios e os diálogos), o que provoca uma dissincronia. Esse efeito é muito importante para acrescentar informações ao filme. Mostra-nos que Cipriano, mesmo trancado em seu mundo silencioso, vive perturbado pelas tensões do universo. Ainda nos remetendo a tal efeito, percebe-se que ele provoca uma alteração no tom intimista e confessional de Vicente, o narrador. Este procedimento muda o sentido da recepção sonora do interlocutor. Como ouvimos várias vozes ao mesmo tempo, a voz do narrador não tem a mesma projeção e autoridade. Na própria essência do coro está a coletividade, que é mais densa e impõe mais autoridade. Há um momento, em “Procissão” onde a voz de Vicente é nitidamente tomada pelo coro religioso. A música, densas harmonias de teclado, pouco a pouco toma espaço e cobre o coro da procissão. Percebamos a significativa gradação: do individual ao coletivo, do coletivo ao poético, ao indefinível.
[Continua...]
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