- Publicado em amálgama #6, março de 2008
A TRILHA DE CIPRIANO: TENSÃO E POLIFONIA
por Alfredo Werney
II
Para Cipriano, o compositor Peter Loyd utilizou sons produzidos a partir de sintetizadores, além de percussões. Para estranhamento de muitos ouvidos desatentos ou desinformados, Loyd não se prendeu a temas (na maioria das vezes com melodia, no modo mixolídio, tocada por violas e acompanhada por zabumbas) com o intuito de promover uma localização espaço-temporal do filme para os espectadores. É certo que no tema de abertura ouvimos o acordeão solando uma melodia composta por duas frases com ritornelo. O interesse, porém, não é localizar e mostrar que estamos no Nordeste, já que o referido instrumento é típico na cultura desta região. Os scores iniciais, além de fazer alusão ao instrumento que Vicente leva consigo, atuam como um elemento reforçador da plástica da obra. Não obstante, antecipa o sentido do trabalho sonoro do filme como um todo: células musicais curtas e repetitivas que expressam um estado de grande concentração dramática.
O sertão de Cipriano não é temporal. Douglas Machado, além de não utilizar datas, procura filmar o sertão, na medida do possível, abstendo-se de julgamentos morais e políticos. Os próprios personagens carregam consigo uma carga simbólica capaz de tocar a sensibilidade humana, independente do que proferem. Desta forma, torna-se infértil uma construção musical com função espaço/temporal. A visão de mundo do filme é apoiada por fenômenos universais como a morte, a solidão, a religiosidade e os sonhos. Decerto que tais fenômenos possuem um determinado grau de especificidade em cada cultura, contudo também possuem zonas convergentes.
A música programática, especificamente a composta para um filme, se constrói a partir do diálogo com outros elementos estilísticos: fotografia, cenário, montagem e encenação, principalmente. Diferentemente ocorre com a música dita “pura”, visto que a mesma possui uma vida própria, está desvinculada de outros componentes extramusicais. Baseado nesta concepção da música dialógica é que se estruturou o som de Cipriano. Dois aspectos constantes do discurso do filme que serviram de ponto de partida para as intervenções sonoras: os contrastes e a circularidade dos movimentos. A fotografia provoca contraste pelas cores (elemento explicitador de diferentes temperaturas) e através do claro/escuro que oscilam. A montagem – organizada por imagens que circulam e servem como motivos condutores – articula planos rápidos (flashes) com planos lentos (o que valoriza a ação dramática). A narrativa é circular, igualmente, o fenômeno da vida e da morte. Atentemos para o fato de que Vicente inicia sua jornada na água, alegremente, enquanto seu pai está no chão, desfalecido.
Em círculos também são os fluidos movimentos da dança da morte, de Vicente na procissão, de Cipriano em seu cavalo, do aboio e das rezas que se repetem em algumas seqüências do filme. Como a música incidental apoiou esta concepção estética da imagem e dos sons diegéticos (da própria cena)? A partir da utilização de ostinatos melódicos e rítmicos. Os ostinatos, na linguagem musical, são motivos que se repetem constantemente, seguindo um padrão rítmico, melódico ou harmônico. Em geral, este recurso musical gera tensão por ser obstinadamente repetitivo. Peter utilizou-os no primeiro sonho (Demônios) com o uso de percussões. Os demais sonhos, sobretudo na dança da morte (segundo sonho), o trilheiro optou por ostinatos com timbre metálico, como o próprio registro sonoro das rezadeiras. O timbre, conseguido a partir de sintetizadores, procurou criar uma conotação particular, como a própria seqüência. A morte, que remonta os personagens da mitologia clássica, possui um cosmo sonoro idiossincrático. Os ruídos do seu instrumento cortante, a cor peculiar de sua voz e toda a saturação sonora de fundo compõe o quadro de sua personalidade.
As tensões na música de Cipriano não são produzidas, na maioria do drama, pela passagem da dominante para o repouso da tônica. O estado de grande concentração dramático-musical da película é provocado pelas saturações sonoras e os contrastes: as orações, a narração, a música da cena, os ruídos ambientais e o silêncio. Ouvimos todo esse universo polifônico simultaneamente. Esta sinestesia, da qual não podemos separar nitidamente um elemento do outro, nos tira do nosso eixo comum, do nosso aparente equilíbrio.
No aspecto harmônico, a música tem, em geral, um sabor sonoro modal. Principalmente nos primeiros minutos de projeção, o que nos antecipa a informação de que a narrativa não é linear, facilmente definida. Contudo, há de se observar, que nos últimos minutos de projeção, os teclados harmoniosos de Peter tocam com acordes mais suaves e consonantes. É compatível com a textura dramática da obra, visto que os últimos instantes do filme são de conciliação: Cipriano encontra a morte, Vicente reencontra a vida. A linguagem modal da música incidental não é utilizada com intuito de representar o ethos de um povo, como se fizera na Grécia Antiga (embora sabendo que os modos dessa época diferiam dos de hoje), mas para escapar de alguns clichês harmônicos – principalmente o repouso na tônica – que deixam o enredo linear. De certa forma, seria um pleonasmo se optar por tal construção, pois o aboio e as rezas, componentes da música diegética, já servem para expressar o mundo nordestino.
[Continuação...]
A TRILHA DE CIPRIANO: TENSÃO E POLIFONIA
por Alfredo Werney
II
Para Cipriano, o compositor Peter Loyd utilizou sons produzidos a partir de sintetizadores, além de percussões. Para estranhamento de muitos ouvidos desatentos ou desinformados, Loyd não se prendeu a temas (na maioria das vezes com melodia, no modo mixolídio, tocada por violas e acompanhada por zabumbas) com o intuito de promover uma localização espaço-temporal do filme para os espectadores. É certo que no tema de abertura ouvimos o acordeão solando uma melodia composta por duas frases com ritornelo. O interesse, porém, não é localizar e mostrar que estamos no Nordeste, já que o referido instrumento é típico na cultura desta região. Os scores iniciais, além de fazer alusão ao instrumento que Vicente leva consigo, atuam como um elemento reforçador da plástica da obra. Não obstante, antecipa o sentido do trabalho sonoro do filme como um todo: células musicais curtas e repetitivas que expressam um estado de grande concentração dramática.
O sertão de Cipriano não é temporal. Douglas Machado, além de não utilizar datas, procura filmar o sertão, na medida do possível, abstendo-se de julgamentos morais e políticos. Os próprios personagens carregam consigo uma carga simbólica capaz de tocar a sensibilidade humana, independente do que proferem. Desta forma, torna-se infértil uma construção musical com função espaço/temporal. A visão de mundo do filme é apoiada por fenômenos universais como a morte, a solidão, a religiosidade e os sonhos. Decerto que tais fenômenos possuem um determinado grau de especificidade em cada cultura, contudo também possuem zonas convergentes.
A música programática, especificamente a composta para um filme, se constrói a partir do diálogo com outros elementos estilísticos: fotografia, cenário, montagem e encenação, principalmente. Diferentemente ocorre com a música dita “pura”, visto que a mesma possui uma vida própria, está desvinculada de outros componentes extramusicais. Baseado nesta concepção da música dialógica é que se estruturou o som de Cipriano. Dois aspectos constantes do discurso do filme que serviram de ponto de partida para as intervenções sonoras: os contrastes e a circularidade dos movimentos. A fotografia provoca contraste pelas cores (elemento explicitador de diferentes temperaturas) e através do claro/escuro que oscilam. A montagem – organizada por imagens que circulam e servem como motivos condutores – articula planos rápidos (flashes) com planos lentos (o que valoriza a ação dramática). A narrativa é circular, igualmente, o fenômeno da vida e da morte. Atentemos para o fato de que Vicente inicia sua jornada na água, alegremente, enquanto seu pai está no chão, desfalecido.
Em círculos também são os fluidos movimentos da dança da morte, de Vicente na procissão, de Cipriano em seu cavalo, do aboio e das rezas que se repetem em algumas seqüências do filme. Como a música incidental apoiou esta concepção estética da imagem e dos sons diegéticos (da própria cena)? A partir da utilização de ostinatos melódicos e rítmicos. Os ostinatos, na linguagem musical, são motivos que se repetem constantemente, seguindo um padrão rítmico, melódico ou harmônico. Em geral, este recurso musical gera tensão por ser obstinadamente repetitivo. Peter utilizou-os no primeiro sonho (Demônios) com o uso de percussões. Os demais sonhos, sobretudo na dança da morte (segundo sonho), o trilheiro optou por ostinatos com timbre metálico, como o próprio registro sonoro das rezadeiras. O timbre, conseguido a partir de sintetizadores, procurou criar uma conotação particular, como a própria seqüência. A morte, que remonta os personagens da mitologia clássica, possui um cosmo sonoro idiossincrático. Os ruídos do seu instrumento cortante, a cor peculiar de sua voz e toda a saturação sonora de fundo compõe o quadro de sua personalidade.
As tensões na música de Cipriano não são produzidas, na maioria do drama, pela passagem da dominante para o repouso da tônica. O estado de grande concentração dramático-musical da película é provocado pelas saturações sonoras e os contrastes: as orações, a narração, a música da cena, os ruídos ambientais e o silêncio. Ouvimos todo esse universo polifônico simultaneamente. Esta sinestesia, da qual não podemos separar nitidamente um elemento do outro, nos tira do nosso eixo comum, do nosso aparente equilíbrio.
No aspecto harmônico, a música tem, em geral, um sabor sonoro modal. Principalmente nos primeiros minutos de projeção, o que nos antecipa a informação de que a narrativa não é linear, facilmente definida. Contudo, há de se observar, que nos últimos minutos de projeção, os teclados harmoniosos de Peter tocam com acordes mais suaves e consonantes. É compatível com a textura dramática da obra, visto que os últimos instantes do filme são de conciliação: Cipriano encontra a morte, Vicente reencontra a vida. A linguagem modal da música incidental não é utilizada com intuito de representar o ethos de um povo, como se fizera na Grécia Antiga (embora sabendo que os modos dessa época diferiam dos de hoje), mas para escapar de alguns clichês harmônicos – principalmente o repouso na tônica – que deixam o enredo linear. De certa forma, seria um pleonasmo se optar por tal construção, pois o aboio e as rezas, componentes da música diegética, já servem para expressar o mundo nordestino.
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