amálgama #6 - A Trilha de Cipriano: Tensão e Polifonia [parte01]

- Publicado em amálgama #6, março de 2008





A TRILHA DE CIPRIANO: TENSÃO E POLIFONIA

por Alfredo Werney



Com seu velho acordeon Vicente executa acordes aleatórios. Na fluidez dos movimentos do seu instrumento, que é a extensão visual e musical da personagem, ele cria o seu próprio mundo sonoro. De outro lado, trancado dentro de sua solidão, o velho Cipriano sonha e busca a morte. O seu silencio mortal contrasta com a polifonia que entrecruza sua jornada. Vida e morte, som e silêncio compõem esta paisagem barroca.




I

Rezas, incelências, benditos, sussurros femininos, timbres metálicos irreconhecíveis, sinos, ostinatos, efeitos percussivos, o aboio e singelas melodias. Esta é, em suma, a paisagem sonora de Cipriano (2003), considerado o primeiro longa-metragem do Piauí.

Nas primeiras décadas do cinema sonoro, a música geralmente desempenhava a função de apoiar a narrativa, acentuando momentos de clímax e resolvendo as tensões harmônicas nos instantes de repouso. Em experiências mais contemporâneas, a música do cinema conseguiu emplacar um discurso mais pessoal e, desta forma, acrescentar mais informações às imagens visuais. Em Cipriano estamos diante de uma trilha sonora que apóia a linguagem visual, mas também especula e constrói efeitos particulares. Não se trata de uma intervenção sonora pleonástica que simplesmente repete, sem uma intenção estética definida, o discurso das imagens.

A composição audiovisual de Cipriano oscila entre momentos de harmonia/desarmonia, convergência/divergência. O fato é que som e imagem, mesmo sendo elementos de diferente constituição material, fazem parte da construção do mesmo fenômeno. Em outros termos, expressam a mesma carga simbólica do filme. Os movimentos de câmera, a narrativa, a montagem e diálogos são estruturados em movimentos circulares. Na banda sonora, da mesma forma, os sons das rezadeiras, o aboio, melodias e células rítmicas com repetições: um cenário musical complexo que revela uma visão de mundo cíclica e tensa. Este universo polifônico de Cipriano é construído a partir de uma organização visual e musical barroca, se compreendermos o termo no sentido amplo e não só como um período específico da História da Arte. Os elementos intrínsecos da escrita musical (a música em si) não são elaborados dentro dos padrões estilísticos do período Barroco. A organização sonora do filme como um todo, sim, é de expressão barroca. Várias vozes soam em diferentes ritmos: a narrativa de Vicente, as orações, a música incidental, os ruídos próprios do ambiente. Toda esta construção musical funciona como várias linhas melódicas estruturadas em contraponto. A sonorização da película não é um simples adereço da imagem. Os eventos sonoros, da forma como estão encadeados, acentuam a tensão e o dilaceramento, provocado pelo embate do Bem e do Mal, do espírito do velho Cipriano.

Um aspecto marcante de Cipriano é a variedade de imagens visuais e sonoras. Uma construção politextual, como o trabalho de Douglas Machado e sua equipe, ignora interpretações simplistas e unidirecionais. O filme, de uma forma ampla, procura expressar as tensões e dissonâncias presentes no imaginário popular nordestino. A moldura deste discurso é a religiosidade, a morte e os sonhos, fenômenos retratados em toda a sua amplitude poética.

A tradição oral nordestina é um dos elementos estruturadores do trabalho do diretor. Os benditos e as incelências, presentes desde os primeiros minutos de projeção, servem como um motivo melódico que guia os caminhos harmônicos percorridos pela narrativa. Em virtude disso é que percebemos a dimensão que o som ocupa em um trabalho dessa envergadura. Curiosamente Douglas iniciou o seu trabalho com sua equipe gravando as vozes das rezadeiras em Piripiri, cidade do norte piauiense.

O cinema, depois do advento do som na década de vinte, sofreu ininterruptas modificações estéticas. Na realidade, como nos afirmara Alberto Cavalcante, música sempre houve no cinema. A complexidade estava – e ainda constitui um trabalho complexo – em se equilibrar diálogos, música e os ruídos do ambiente. A banda sonora narra, antecipa, reforça ou até mesmo nega as imagens. Longe de tornar o cinema mais próximo de nossa realidade audiovisual, como Pudovikine nos mostrara, a sonorização cria uma nova realidade cinematográfica, na medida em que transfigura as imagens.


[Continua...]

Comentários

Anônimo disse…
Você deveria dar uma reorganizada no teu Blog, pois o conteúdo é maravilhoso!
Desculpa pela minha sinceridade!
Voltarei mais vezes.
Anônimo disse…
Toda crítica, comentário, sugestão, é sempre bem-vinda. Realmente, seria interessante reorganizar o blog.