amálgama #6 - Liberdade de Expressão: Mito ou Falácia? [parte02]

- Publicado em amálgama #6, março de 2008


LIBERDADE DE EXPRESSÃO: MITO OU FALÁCIA?
Reflexões sobre a produção e a dissimulação de sentidos


por Roselany Duarte


[continuação...]


Sentidos não-literais na linguagem:
pressupostos e subentendidos


Em A Tapas e Pontapés, Diogo Mainardi (2004, p. 185) termina uma de suas crônicas da seguinte maneira: “Ainda bem que o Brasil tem tantos pobres. Dá de sobra pra todo mundo: para os escritores, para os políticos, para os revolucionários, para os jornalistas. O que seria de nós sem tanto pobres?”

Nesta circunstância, o enunciado “Ainda bem que o Brasil tem tantos pobres” não deve ser entendido em seu sentido primeiro. Caso façamos isso, reduziremos a figura do autor, Diogo Mainardi, a um sádico inconseqüente. Levando em conta os enunciados que seguem àquele e também a presença ostensiva da ironia nos textos de Mainardi, temos aí uma crítica à exploração da pobreza com fins auto-promocionais realizada por intelectuais e políticos.

Este fato nos demonstra que grande parte dos enunciados possui um ou vários conteúdos implícitos, além de um sentido primeiro ou conteúdo explícito. Assim, as idéias que significam e são investidas de sentido podem ser a) literais, quando a significação coincide com aquilo que se quer dizer ou b) não-literais, quando não translúcidas, quando transmitem informações passíveis de interpretações devido à sua opacidade e carregam muitas vezes modos de dizer que acabam nos persuadindo a reproduzir determinadas instâncias ideológicas (ZANDWAIS, 1990, p.07).

Em diversas situações, como no enunciado de Mainardi acima transcrito, pode ocorrer o que Kerbrat-Orecchioni (1986) chama de tropo implicativo, isto é, quando, em certas condições de produção[1], o conteúdo literal é colocado em segundo plano pelo conteúdo não-literal.
A percepção do tropo implicativo, quando este ocorre, é fundamental para a compreensão do processo de produção dos sentidos. Se o analista do discurso não o percebe não só fará uma interpretação equivocada do enunciado, como também será incapaz de desvelar as interpelações ideológicas que estão cravadas nas entrelinhas dos discursos. No bojo desta problemática, Zandwais (idem, p. 13) observa que:

É no nível implícito da linguagem que os afrontamentos ideológicos se constituem em atos de poder que somente se dão a conhecer através de raciocínios dedutivos, que pressupõem, tanto análises das condições sócio-históricas de produções dos atos de comunicação verbal, como em conhecimento das leis que governam a lógica das línguas naturais.

As estratégias cognitivas, semânticas e pragmáticas de atravessar a opacidade textual, quebrando o mito da transparência lingüística, podem ser distinguidas por duas categorias, de acordo com Grice (1967): a) as implicaturas convencionais, que são aquelas co-textualizadas, ancoradas nas expressões lingüísticas ; e b) as implicaturas conversacionais, que se caracterizam pela cognição ocasionada nas entrelinhas da textualidade. Esta segunda categoria tem como aliados-mor o conhecimento prévio do interlocutor e o contexto, pois sem estes não há entendimento.

Porém, o entendimento efetivo da comunicação também depende do princípio da cooperação que Grice (1967) sistematiza em quatro máximas, denominadas máximas conversacionais. A máxima da quantidade está relacionada à proporcionalidade entre a fala do enunciador e a informação exigida no momento, isto é, a contribuição do enunciador não deve conter mais informação do que a requerida.

A máxima da qualidade procura verificar a veracidade das enunciações; ela indica que o enunciador não deve afirmar o que acredita ser falso. As máximas da relação e da maneira relacionam-se, respectivamente, com a pertinência (se o enunciado está necessariamente no universo do assunto tratado) e com a forma de se expressar, com base na clareza, ordem, concisão. Quando estas máximas conversacionais são violadas, abre-se caminho para as implicaturas, que desenvolvemos a seguir, sobre a ótica de Oswald Ducrot.

[continua...]



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[1] Segundo a noção de condições de produção (ORLANDI, 1996), o sentido de um discurso não pode ser isolado das condições em que o mesmo é produzido e recepcionado. O contexto sócio-histórico e ideológico, o local social do qual se diz, a imagem que um interlocutor faz do outro, a intertextualidade são fatores, entre outros, que contribuem para a produção do sentido.

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