amálgama #6 - Liberdade de Expressão: Mito ou Falácia? [parte01]

- Publicado em amálgama #6, março de 2008


LIBERDADE DE EXPRESSÃO: MITO OU FALÁCIA?
Reflexões sobre a produção e a dissimulação de sentidos


por Roselany Duarte




Limites do dizer: polidez e ordem do discurso

Muitas vezes ouvimos ou falamos expressões do tipo: “todo homem tem direito a dizer o que pensa, pois vivemos numa sociedade democrática” ou “temos liberdade de expressão, podemos falar o que queremos onde queremos e com quem queremos”. Se alguém acredita nestas falas de forma incondicional, podemos caracterizar essa atitude como ingênua. Mas se alguém imagina possibilidades estratégicas de comunicação num contexto pragmático, então podemos inferir que os enunciados carregam instâncias ideológicas ancoradas no tempo e no espaço que significam e direcionam sentidos, cabendo, assim, ao interlocutor recepcionar as produções discursivas através de estratégias que quebram a opacidade da linguagem enquanto discurso.

Focalizando a língua como instrumento de comunicação, o ato de comunicar, na perspectiva de Jakobson, consolida-se no esquema emissor-mensagem-receptor através de um canal; este esquema jakobsoniano, no entanto, não atenta para o fato de que a mensagem a ser transmitida ao destinatário não é algo pronto e acabado. A literalidade da linguagem constitui-se no campo da significação.

A palavra, a frase e a oração, para constituirem sentido, necessitam transformar-se em enunciações. No contexto pragmático, é no uso das palavras , na sua plasticidade de produzir efeitos, que elas dão e criam sentidos. Na perspectiva de Fiorin (2002, p.168):

A frase é um fato lingüístico caracterizado por uma estrutura sintática e uma significação calculada com base na significação das palavras que a compõe, enquanto o enunciado é uma frase a que se acrescem as informações retiradas da situações em que é enunciada, em que é produzida (...) a significação é o produto das indicações lingüísticas dos elementos componentes da frase (...) o sentido no entanto é a significação da frase acrescidas das condições contextuais e situacionais.

Ao nos comunicarmos, utilizamos palavras que significam e que criam sentido, expondo idéias que podem vir expressas ou veladas. O velamento de idéias é, por um lado, um imperativo de qualquer enunciação, já que a linguagem, em maior ou menor grau, sempre é opaca e todo dito se apoia, necessariamente, em pressupostos não-ditos.

Por outro lado, o ato de implicitar idéias pode ser usado de forma deliberada por um enunciador como uma forma estratégica de conservação da auto-imagem, já que

(...) em circunstâncias particulares de interação verbal, há certos tipos de juízos, sob os outros, que não se pode expressar de modo explícito, sob a pena de ofender, rejeitar, humilhar, estabelecer confrontos diretos, ou até mesmo perder a credibilidade dos interlocutores.
(...)
Uma outra justificativa (...) pode ser elucidada pelo fato de que tudo aquilo que se diz, de forma explícita no discurso, pode se constituir em matéria de controvérsias, de objeções a serem feitas pelo interlocutor (ZANDWAIS, 1990, p. 11e 12)


No campo da pragmática lingüística, este problema da conservação da auto-imagem do sujeito enunciador foi estudado a partir da noção de polidez. Na vida cotidiana, a polidez é compreendida como boa educação, como etiqueta; em pragmática trata-se de um conceito que descreve o conjunto de procedimentos cuja função é preservar o caráter harmonioso da relação interpessoal, evitando a emergência de conflitos propiciados pelo diálogo assimétrico ou pelos ruídos nas comunicações (LAKOFF, 1973).

Partindo dos estudos de Grice, Lakoff (1973) sistematizou o “princípio da polidez”, detalhando-o em três regras: a formalidade (o locutor não deve se impor, deve manter distância); a camaradagem (o locutor deve agir como se ele e seu interlocutor fossem iguais); e a hesitação (o locutor deve deixar as escolhas para o seu interlocutor).

A noção de polidez é importante para o analista do discurso porque é a partir dela que se pode compreender um conjunto significativo de fatos inscritos na língua que só são interpretáveis se lembrarmos do caráter de “negociação” que é inerente às interações verbais. Segundo Kerbrat-Orecchioni (2006, p. 384), a polidez é uma estratégia de grande importância social porque permite “conciliar os interesses geralmente desencontrados do Ego e do Alter, e manter um estado de equilíbrio relativo e sempre precário entre a proteção de si e a consideração de outrem”.

Mesmo um autor essencialmente irônico, como é o caso de Diogo Mainardi, tem que buscar equilibrar o sarcasmo com a polidez, numa negociação tensa em que ora o leitor é levado a sentir raiva do autor (ou melhor, da imagem de si que ele constrói), ora é levado a senti-lo como cúmplice.

Porém, apenas a noção de polidez não dá conta das limitações impostas ao dizeres, já que ela implica apenas as estratégias individuais de controle do que se enuncia. Acontece que, no âmbito social, os discursos não circulam livremente, antes são submetidos a um conjunto de procedimentos de controle, como demonstrou Michel Foucault, que dedicou grande parte de sua obra ao estudo das complexas relações que se estabelecem entre discurso e poder.

Segundo este pensador, para fazermos parte da “ordem do discurso” (FOUCAULT, 2002a) não podemos dizer tudo o que queremos e onde queremos; temos que nos submeter a normas que disciplinam, limitam e em certas circunstâncias até interditam nosso dizer. Foucault (2002a) identifica três grandes grupos de procedimentos que permitem controlar os discursos: a) os procedimentos externos de controle, que dominam os poderes dos discursos; b) os procedimentos internos de controle, que conjuram as aparições dos discursos; c) os procedimentos que determinam as condições de funcionamento dos discursos e impõem aos indivíduos que os enunciam a submissão a um sistema de regras.

Aos procedimentos externos pertencem o tabu da palavra (exclusão por interdição que atinge principalmente os discursos da sexualidade e da política; indica que não se pode falar de tudo em qualquer situação, nem mesmo qualquer um pode falar de qualquer coisa), a segregação da loucura (a oposição razão e loucura implica a anulação do discurso daquele que é tido como louco, já que este não pode testemunhar na justiça, nem pode autenticar um ato ou um contrato) e a vontade de verdade (as práticas, para terem validade, devem se apoiar em um “discurso de verdade”; por exemplo, o sistema penal busca suportes e justificativas no direito penal, na psiquiatria, na psicologia e na sociologia, que são instâncias produtoras de “verdades”).

Os procedimentos internos também Foucault divide em três: o comentário, que limita “o acaso do discurso pelo jogo de uma identidade que teria a forma da repetição e do mesmo” (2002a, p. 29, grifo do autor), fazendo com que o texto-comentado se submeta ao texto-comentário; o autor, que “limita esse mesmo acaso pelo jogo de uma identidade que tem a forma da individualidade e do eu” (idem, ibidem); a disciplina (entendida como campo do conhecimento), que fixa os limites do discurso “pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reatualização permanente das regras” (idem, p. 36); por exemplo, o discurso da medicina expurga toda forma de explicação de uma doença que não se valha do jargão médico, assim como expurga como crendice popular qualquer forma de remédio ou tratamento de doença que não estejam sistematizados nos postulados da ciência médica.

A disciplina então age como uma “ ‘polícia’ discursiva que devemos reativar em cada um de nossos discursos” (idem, p. 35). Já os procedimentos que determinam as condições de funcionamento dos discursos visam selecionar os sujeitos que falam e Foucault destaca três deles.

O ritual é o que “define a qualificação que devem possuir os indivíduos que falam” (idem, p. 39), estabelecendo uma assimetria na interação discursiva, como se observa nos discursivos religiosos, jurídicos e terapêuticos. A sociedade de discurso constitui-se daqueles que se agrupam com o objetivo de produzir ou conservar discursos, “mas para fazê-los circular em um espaço fechado, distribuí-los somente segundo regras restritas, sem que seus detentores sejam despossuídos por essa distribuição” (idem, ibidem).

Por fim, as “doutrinas” (religiosas, políticas, filosóficas), que “ligam os indivíduos a certos tipos de enunciação e lhes proíbe, conseqüentemente, todos os outros” (idem, p. 43); estas realizam uma dupla sujeição: “dos sujeitos que falam aos discursos e dos discursos ao grupo, ao menos virtual, dos indivíduos que falam” (idem, ibidem).

Foucault lembra ainda que, na maior parte do tempo, estes procedimentos de exclusão ligam-se uns aos outros e garantem “a distribuição dos sujeitos que falam nos diferentes tipos de discurso e a apropriação dos discursos por certas categorias de sujeito” (idem, p. 44). Portanto, a operação de separar estes procedimentos é abstrata e didática.

Toda essa discussão que levantamos acerca do conjunto de procedimentos a que se deve submeter-se para se instaurar na ordem do discurso, lembra-nos que quando um enunciador constrói a imagem de si, seu caráter discursivo, ele se submete, de certa maneira, a certas regras estabelecidas pela ordem social dos discursos e isto produz níveis diferenciados de constrangimentos.

[Continua...]

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