amálgama #6 - Haicai, haicais - Uma entrevista com Paulo Franchetti [parte03]

Bashô


HAICAI, HAICAIS

uma entrevista com
PAULO FRANCHETTI


por Wanderson Lima


[continuação...]



Wanderson - O haicai seria um dos antídotos contra a tendência formalista e metalingüística que tem dominado a poesia brasileira do Concretismo aos nossos dias?

Franchetti
- É difícil responder à pergunta, porque a denominação “formalista” é pouco precisa e de difícil utilização. Principalmente porque pressupõe algum tipo de “conteudismo” ou “realismo”, que não sei bem o que seja, se estamos falando de linguagem, de poesia. Assim, penso que não devemos utilizar ou receber com tranqüilidade a palavra “formalismo” para nos referirmos à Poesia Concreta. Em São Paulo, temos essa idéia de que a Poesia Concreta é bem descrita pelo termo “formalista”. Como se qualquer tipo de poesia não fosse “formalista”... Creio que esse uso é ainda um resquício do combate travado, no último terço do século passado, entre concretos e discípulos de Antonio Candido. O debate foi animado, e a mídia paulista soube balizar e promover espertamente essa espécie de fla-flu cultural. Daí talvez provenha a permanência da palavra, que era uma espécie de condenação ou insulto que aqueles que se arrogavam o conhecimento do que seria verdadeiramente nacional e popular, bem como do que seriam os reais motores da vida econômica e cultural, brandiam contra os “concretistas”. Eram tempos difíceis, e a acusação de “formalista” equivalia, mais ou menos, à de “alienado”. Mas agora que estamos fora desse contexto, o que pode querer dizer “formalismo”? Se o objetivo da palavra for designar a fala ecolálica, isto é, a que se produz como um eco, como repetição fragmentária, sem marca de autoria, então é certo que boa parte da poesia contemporânea brasileira sofre desse mal, e não só a que deriva direta ou indiretamente da Poesia Concreta. O triunfo de um certo neoparnasianismo que hoje ganha espaço editorial e prêmios com a sua métrica de bate-estaca, o seu vocabulário repolhudo e a previsibilidade tediosa das rimas e das imagens é, sob esse ponto de vista, muito mais notável. Nas suas vertentes mais interessantes, que são a de orientação zen e a de orientação nipônica conservadora, o haicai faz da modéstia e do apagamento do eu valores estéticos. E tendo como norma central a busca de uma linguagem objetiva e coloquial, tanto o haicai zen quanto o haicai tradicional tendem a recusar o exibicionismo, a ostensiva e fácil elaboração lingüística ou metalingüística. Além disso, essas duas vertentes do haicai o difundem basicamente por meio de oficinas, debates, concursos e sessões de estudo, de modo que o nome haicai designa aí, mais do que um gênero literário ou uma forma, uma prática, um modo específico de utilizar a linguagem. Uma prática que se revela avessa à celebração e à exibição do “gênio”, e na qual o produto é, muitas vezes, avaliado principalmente como testemunho de uma ação dirigida para uma finalidade. Bom, se “formalista” quiser dizer, em alguma medida, ecolalia e/ou preciosismo de ouropel, então é possível que o haicai possa ser visto e tomado como antídoto.



Wanderson - No estudo introdutório ao livro Haikai – História e Antologia, o senhor desmistifica o papel de excessiva relevância que Haroldo de Campos atribui à visualidade do kanji (ideograma), assim como critica o artificialismo da tradução do famoso poema da rã de Bashô feita por ele.

Franchetti - Penso que as traduções de Haroldo foram feitas com um viés muito específico. Ele julgava que devia concentrar a atenção no ideograma. Ora, uma dada palavra, num haicai, tanto pode ser escrita com ideograma ou com caracteres silábicos. É uma escolha que o poeta ou o calígrafo tem. Além disso, a poesia clássica japonesa, da qual o haicai emerge tardiamente como forma autônoma, é eminentemente oral: os participantes se reúnem e dizem as estrofes do poema coletivo, que são anotadas por um secretário. Já o haicai, o terceto isolado do poema coletivo, era apresentado sempre com um outro texto, verbal ou visual. Quando era apresentado com um acompanhamento visual, a escolha do kanji ou da grafia silábica era determinada pelas necessidades da composição visual. Quero dizer: há muito mais visualidade, no haicai, do que a visualidade enfatizada por Haroldo, que tinha uma perspectiva simultaneamente etimológica e paronomástica: etimológica porque buscava decompor o kanji nos seus componentes, e paronomástica porque buscava, ao longo do haicai, as repetições, as retomadas das partes ou figuras identificadas na decomposição do ideograma. Minha crítica à tradução do haicai da rã, nesse livro, se funda no fato de que o texto de Bashô, cuja singularidade na história do haicai reside no fato de ter tratado a rã sem personificações, alusões ou ironia, acabou por originar, em português, um texto desequilibrado, que atrai sobre o jogo verbal, e não sobre o seu despojamento imagético e lingüístico, a atenção do leitor.



Wanderson - A bibliografia em língua portuguesa sobre haicai tem aumentado? Que trabalhos sobre o tema, entre os mais recentes, o senhor recomendaria?

Franchetti - A bibliografia tem aumentado pouco, do ponto de vista da reflexão conseqüente, que não se contenta em ser apenas uma glosa das idéias de Campos ou de Leminski. A rigor, os mais interessantes que li nos últimos anos, porque originais e consistentes, são alguns trabalhos assinados por Luis Dolhnikoff. Creio que ainda são inéditos, o que é uma pena para os leitores, porque dois deles, um ensaio sobre o haicai em Pedro Xisto e um sobre a diferença do haicai em relação à poesia ocidental, me parecem o que de mais vivo se escreveu recentemente sobre o assunto.


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Wanderson Lima é poeta e professor,
autor de Morfologia da Noite (2001) e Balé de Pedra (2006).
wandersontorres@hotmail.com

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