- Publicado em amálgama #6, março de 2008
A TRILHA DE CIPRIANO: TENSÃO E POLIFONIA
por Alfredo Werney
V
Uma narrativa aparentemente simples e linear. Um homem deseja morrer próximo ao mar. Seus filhos Abigail e Vicente são designados a realizar tal promessa.
Navegar no universo de Cipriano é procurar sentir a abrangência poético-musical do nordestino, do latino-americano. Trata-se de uma “viagem ao desconhecido”, de uma investigação das camadas internas desse “acordar-se para dentro”, que são nossos sonhos. Longe de utilizar os sons para nos dizer o que as imagens do mundo já o fazem, Cipriano possui um cosmo sonoro de referencialidade própria. A aparente desorganização do som da película representa, no fundo, a sua forma de equilíbrio. Não obstante, os planos sonoros e visuais da obra nos remetem a alegorias, a arquétipos e, desta forma, são muito mais do que simples analogias audiovisuais. Há, pois, um equilíbrio entre a inteligentibilidade com que é expresso tais eventos e a fruição emocional e artística da obra como um todo.
A variedade de símbolos de Cipriano pode nos conduzir a diferentes interpretações. Pode simplesmente nos arrastar para o seu mundo e nos provocar diferentes sensações. Observemos em Vicente a força com que procura expressar seu universo interior. Mergulha, canta com parte da boca imersa na água e procura, assim, construir novos significados para a sonoridade do mundo. Ele expressa, no primeiro sonho (Demônios), como entende o mundo e as pessoas de sua vivência:
“Bigail anda e anda e se enterra em seu silêncio.
Em suas memórias distantes. Eu me passo, me distraio.
Crio o meu mundo e venho vez em quando visitá-la.
O pai é dela, não meu. Eu não quero ser seu filho, e por não querer não sou.
Ele sonha, eu vivo. Eu gosto da Bigail e com ela fico”.
A fala do personagem (na narração, em off) nos comunica a preocupação com que o filme busca construir uma realidade pessoal, somente compreendida amplamente dentro do seu próprio contexto.
A realidade audiovisual do filme não faz alusões à pobreza e aos problemas político-sociais do Piauí. O mundo “cipriânico” fotografa a dimensão espiritual e artística do humano. Não há espaço para bairrismos e panfletos. Douglas Machado entende que o cinema-arte não é um simples meio de transmissão de um conteúdo ideológico, pois não pode ser negado enquanto linguagem. A trilha sonora do filme, de uma forma geral, conseguiu expressar o que não está nas imagens. Não se trata de um trabalho sonoro mercadológico que recheia o filme de “cançõezinhas” conhecidas ou de fácil assimilação para atingir uma alta vendagem da trilha musical. Trata-se de um trabalho que visa alargar a dimensão poética da imagem, sendo também um importante elemento para compreendermos o discurso fílmico.
Por tudo isso, o som em Cipriano é muito mais que uma fotografia da nossa realidade sonora. Constitui-se uma incessante busca da complementação da poesia visual com a poetização do som. Há algum tempo, sobretudo no cinema contemporâneo com o aparato tecnológico digital (doulby digital), o “ruído” (entre aspas, já que no discurso musical contemporâneo, principalmente no contexto da música de cena, a distinção entre ruído e som é estéril) adquiriu uma dimensão estética essencial para a construção e compreensão do fenômeno cinematográfico. O contraponto do elemento sonoro com a imagem vigorou principalmente na cinematografia moderna. Em Cipriano estamos diante de uma produção que pensa o cinema como uma arte que constrói uma nova percepção do humano e do mundo, que são fenômenos indissociáveis. Nesse sentido, não há na película uma rigorosa sintonia estilística entre música e imagem, com a qual se procura construir sistemas totalizantes. A “desarmonia” entre a palavra, ruído e imagem, ratifiquemos, criam um universo conceitual próprio em Cipriano. Tais eventos corroboram o aspecto dominante da composição do filme: a tensão – provocada pelo “desacordo” entre os elementos estilísticos, e a textura polifônica – composta pelas diferentes linhas melorrítmicas.
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Alfredo Werney é violonista e professor.
alfredoviolao@hotmail.com
A TRILHA DE CIPRIANO: TENSÃO E POLIFONIA
por Alfredo Werney
V
Uma narrativa aparentemente simples e linear. Um homem deseja morrer próximo ao mar. Seus filhos Abigail e Vicente são designados a realizar tal promessa.
Navegar no universo de Cipriano é procurar sentir a abrangência poético-musical do nordestino, do latino-americano. Trata-se de uma “viagem ao desconhecido”, de uma investigação das camadas internas desse “acordar-se para dentro”, que são nossos sonhos. Longe de utilizar os sons para nos dizer o que as imagens do mundo já o fazem, Cipriano possui um cosmo sonoro de referencialidade própria. A aparente desorganização do som da película representa, no fundo, a sua forma de equilíbrio. Não obstante, os planos sonoros e visuais da obra nos remetem a alegorias, a arquétipos e, desta forma, são muito mais do que simples analogias audiovisuais. Há, pois, um equilíbrio entre a inteligentibilidade com que é expresso tais eventos e a fruição emocional e artística da obra como um todo.
A variedade de símbolos de Cipriano pode nos conduzir a diferentes interpretações. Pode simplesmente nos arrastar para o seu mundo e nos provocar diferentes sensações. Observemos em Vicente a força com que procura expressar seu universo interior. Mergulha, canta com parte da boca imersa na água e procura, assim, construir novos significados para a sonoridade do mundo. Ele expressa, no primeiro sonho (Demônios), como entende o mundo e as pessoas de sua vivência:
“Bigail anda e anda e se enterra em seu silêncio.
Em suas memórias distantes. Eu me passo, me distraio.
Crio o meu mundo e venho vez em quando visitá-la.
O pai é dela, não meu. Eu não quero ser seu filho, e por não querer não sou.
Ele sonha, eu vivo. Eu gosto da Bigail e com ela fico”.
A fala do personagem (na narração, em off) nos comunica a preocupação com que o filme busca construir uma realidade pessoal, somente compreendida amplamente dentro do seu próprio contexto.
A realidade audiovisual do filme não faz alusões à pobreza e aos problemas político-sociais do Piauí. O mundo “cipriânico” fotografa a dimensão espiritual e artística do humano. Não há espaço para bairrismos e panfletos. Douglas Machado entende que o cinema-arte não é um simples meio de transmissão de um conteúdo ideológico, pois não pode ser negado enquanto linguagem. A trilha sonora do filme, de uma forma geral, conseguiu expressar o que não está nas imagens. Não se trata de um trabalho sonoro mercadológico que recheia o filme de “cançõezinhas” conhecidas ou de fácil assimilação para atingir uma alta vendagem da trilha musical. Trata-se de um trabalho que visa alargar a dimensão poética da imagem, sendo também um importante elemento para compreendermos o discurso fílmico.
Por tudo isso, o som em Cipriano é muito mais que uma fotografia da nossa realidade sonora. Constitui-se uma incessante busca da complementação da poesia visual com a poetização do som. Há algum tempo, sobretudo no cinema contemporâneo com o aparato tecnológico digital (doulby digital), o “ruído” (entre aspas, já que no discurso musical contemporâneo, principalmente no contexto da música de cena, a distinção entre ruído e som é estéril) adquiriu uma dimensão estética essencial para a construção e compreensão do fenômeno cinematográfico. O contraponto do elemento sonoro com a imagem vigorou principalmente na cinematografia moderna. Em Cipriano estamos diante de uma produção que pensa o cinema como uma arte que constrói uma nova percepção do humano e do mundo, que são fenômenos indissociáveis. Nesse sentido, não há na película uma rigorosa sintonia estilística entre música e imagem, com a qual se procura construir sistemas totalizantes. A “desarmonia” entre a palavra, ruído e imagem, ratifiquemos, criam um universo conceitual próprio em Cipriano. Tais eventos corroboram o aspecto dominante da composição do filme: a tensão – provocada pelo “desacordo” entre os elementos estilísticos, e a textura polifônica – composta pelas diferentes linhas melorrítmicas.
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Alfredo Werney é violonista e professor.
alfredoviolao@hotmail.com
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