INTERLÚDIO, Jornal Diário do Povo
CINEMA IRANIANO I: A MAÇÃ
por Wanderson Lima – escritor e professor.
Já tive oportunidade, nesta coluna, de trazer à tona, num texto bem genérico, informações sobre o que passou a ser conhecido como “neo-realismo iraniano”, um sopro de renovação do cinema mundial, surgido nos anos 80, tendo como figuras de proa os iranianos Abbas Kiarostami e Mohsen Makhmalbaf. Retomo agora este tema que me é caro, numa pequena série de artigos em que comento filmes consagrados deste “movimento” cinematográfico, a começar por “A maçã” (Sib, 1998, Irã / França), de Samira Makhmalbaf.
Samira dirigiu a “A maçã” quando tinha apenas 17 anos, sendo a mais jovem cineasta até hoje a concorrer a prêmio no Festival de Cannes. Acabou ganhando o Prêmio Especial do Júri e tendo o seu nome projetando mundialmente. O filme narra a história verídica de duas irmãs, Massoumeh e Zahra, trancafiadas em casa pelos pais – uma senhora cega e um senhor desempregado – durante 11 anos, o que as levou a um processo de retardo mental. A prisão domiciliar era justificada por uma passagem de um texto religioso segundo o qual as jovens são como pétalas, que fenecem ao contato do sol. No filme, acompanhamos o drama dos pais (do pai, principalmente) para não ver as filhas ficarem sob a tutela do Estado. Ele tentará ensinar as meninas a desenvolver habilidades essenciais, como varrer o terreiro e fazer comida, para provar a uma assistente social que elas devem ficar com a família. O instigante é que não só a história das irmãs é verídica como os envolvidos no drama representam a si mesmos no filme. O pai, por exemplo, aceitou representar a si mesmo por acreditar que, assim, poderia defender seu nome, que fora, em sua opinião, caluniado pela imprensa, quando o caso veio à tona.
Esse esfacelamento das fronteiras entre ficção e documentário, que leva ao hibridismo das imagens, ora em um registro bruto, ora com um zelo pictórico incomum, é nítida influência, no estilo de Samira, de Mohsen Makhmalbaf, que é seu pai e assinou o roteiro do filme, e de Abbas Kiarostami. As imagens da família no Departamento de Bem Estar Social, por exemplo, são documentais, e foram captadas bem antes de a diretora cogitar fazer o filme.
O realismo do filme pode, à primeira vista, chocar, porque Samira é avessa a ornamentos e melodrama. Sente-se, durante todo o filme, que a diretora, mesmo tratando de uma situação dolorosa e aberrante, não nos quer fazer chorar. A precisão e a lentidão da fotografia convidam à reflexão, à apreciação racional. Samira vale-se do distanciamento, evitando que façamos julgamentos emotivos ou unilaterais. Trata-se de um filme polifônico, no sentido bakhtiniano do termo: ali está presente a ótica da família, a da vizinhança e a do Estado, na figura da assistente social. A diretora penetra nos dramas humanos evitando simplificações: não há um culpado, há culpados. Fica sugerido que é a própria estrutura do país – seu modelo de educação, sua moral, seu machismo – que produz as condições que geram casos aberrantes, como o que é analisado no filme.
A primeira cena do filme apresenta bem o estilo da diretora: vemos uma mão que tenta, com dificuldade, regar uma plantinha. Há um impedimento, a mão peleja, mas só uma parte da água cai no vazo. Mais adiante, saberemos que o impedimento fora oriundo de problemas de coordenação motora, já que Massoumeh e Zahra não foram socializadas na idade certa. As irmãs serão como esta tênue planta, e só poderão ser “regadas” quando a mão da coletividade agir. Isto se confirma na cena seguinte, que apresenta os pais das irmãs, significativamente de costas: deles, talvez, elas não possam esperar serem “regadas”. A seguir, vemos um documento, um abaixo-assinado, em que os vizinhos denunciam a situação de Massoumeh e Zahra às autoridades. A última assinatura é justamente de Samira Makhmalbaf que, assim, assina sua responsabilidade não só na/pela ficção, mas na ação social prática.
Assim como a planta da cena inicial, outros símbolos irrompem, ora mais ora menos explícitos, no decorrer do filme. Diríamos que o simbolismo ostensivo é um único e eficaz oásis na aridez do estilo de Samira. Um desses símbolos, a maçã, dá unidade ao filme e, com justiça, serve de título. A maçã aqui não está associada ao pecado, mas à redenção: é com a maçã (e mais tarde com o espelho) que a assistente social declara seu cuidado com Massoumeh e Zahra; é quando as irmãs vão, sozinhas, ao mercado comprar maçãs que fica provado: elas são sociáveis e capazes; com maçãs elas conquistam e celebram suas primeiras amizades; e como era de se esperar, é a maçã que estabelece o dilema no fim filme e redime a diretora de subjetivismo tendencioso e frieza no desfecho. A personagem que encara a “maça-dilema” no final é a mãe de Massoumeh e Zahra. Embora apareça pouco na história, ela é talvez a personagem mais intrigante e mais difícil de ser julgada unilateralmente. Ao mesmo tempo vítima e algoz, através dela a diretora retrata os dilemas da mulher iraniana, cerceada pela violência simbólica da tradução religiosa. Ela é cega e, como se não bastasse, anda sempre com o rosto encoberto. Diríamos que ela é duplamente cega: por uma causa natural e por outra cultural. O trauma que ela causa às meninas não é por maldade, e sim por ignorância. Pensa ela, fundada em preceitos morais e religiosos, estar fazendo o bem.
A sensação geral que o espectador tem dessa mãe no decorrer do filme não poderia deixar de ser de ojeriza, já que, mesmo sem malvadas intenções, ela arruinou a existência das crianças. No entanto, Samira busca mediar, em suas operações formais, um julgamento menos preconceituoso a respeito da pobre mulher. Neste sentido, a cena final do filme é exemplar, e merece um comentário.
O pai, depois da lição severa da assistente social, deixando-o trancafiado em casa para ele sentir na pele o desconforto da reclusão, sai com Massoumeh, Zahra e mais duas crianças a fim de comprar relógios para as filhas em um camelô. Ele avisa à esposa da saída, mas esta parece não ter escutado. Começa a chamar pelas filhas e o marido e termina por sair, tateando, de casa. Na rua, sob um pequeno prédio, é vítima da brincadeira de um menino traquinas, que do segundo andar faz uma maçã amarrada a um barbante voltear sobre a anciã cega. A poesia que emana dessa cena ganha força não só pelo simbolismo da maçã, recorrente em todo filme, mas pelo insólito modo em que a fruta aparece. Temos o enquadramento de uma deficiente visual resmungando enquanto em seu derredor “flutua” uma maçã, isto é, uma possibilidade de imersão na vida sem o ascetismo da moral pessimista que impregna a religião de Alá. O fotograma congela e o filme termina no exato momento em que a mãe de Massoumeh e Zahra consegue pegar a maçã.
Terá ela mordido a fruta? Terá ela, assim, imergido numa vida mais livre? São respostas imprevisíveis e mesmas inúteis à economia do filme. Mas a lição de ética e de arte que Samira Makhmalbaf nos acaba de ofertar decerto irá reverberar em nossa consciência e nossa sensibilidade.
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