amálgama #6 - Haicai, haicais - Uma entrevista com Paulo Franchetti [parte01]




HAICAI, HAICAIS
uma entrevista com
PAULO FRANCHETTI


por Wanderson Lima



Paulo Franchetti é, seguramente, um dos maiores pesquisadores sobre haicai no Brasil. Professor de Teoria da Literatura e Literatura Portuguesa da Universidade Estadual de Campinas, publicou o fundamental Haicai – História e Texto (1990), dentre outros trabalhos de crítica e poesia. Parte de sua produção está disponível no site http://www.unicamp.br/~franchet.





Wanderson Lima - Para iniciar, o senhor poderia resumir, em poucas palavras, o que é o haicai, já que a maioria de nós tem uma visão estritamente tecnicista desta forma poética.

Paulo Franchetti - Em japonês, o haicai é um texto breve, composto de 17 durações, centrado numa percepção da transição das estações. As dezessete durações são divididas usualmente em duas frases, que provocam uma contraposição entre o que é passageiro e o que é duradouro, o que é humano e o que é cósmico, o que é pequeno e o que é grande e assim por diante. No geral, o haicai é objetivo. Em poucos textos escritos por grandes haicaístas encontra-se a expressão direta de sentimentos. O mais das vezes, a emoção intensa que é despertada pelo haicai é provocada pela cena rapidamente esboçada, pela expressão indireta do sentimento. Assim, o haicai japonês é um poema breve, objetivo, que tem como centro um fenômeno ligado à sucessão das estações do ano. Usei a expressão “durações” porque em japonês se contam as durações, como em latim ou grego. Isto é: há sílabas breves, que valem uma duração, e longas, que valem duas durações. Nas línguas ocidentais, quando se quer imitar a forma do haicai, substitui-se o conceito de duração pelo conceito de sílaba. Daí que o haicai seja definido como um poema breve composto de 3 versos: o primeiro e o terceiro de 5 sílabas e o segundo, de 7. Mas essa é justamente a definição mais pobre. A que deixa de lado tudo o que importa. Pois é na ausência de sentimentalidade, na linguagem objetiva, no efeito de registro direto de uma experiência que reside o sabor específico do haicai. E esse é o único interesse do haicai: o seu sabor particular. A forma, o terceto imparissilábico, é banal, sem importância alguma.



Wanderson - Quais as dificuldades que um tradutor de haicai deve enfrentar? O haicai é, realmente, traduzível?

Franchetti - Penso que o haicai seja tão traduzível quanto qualquer texto pertencente a uma civilização distante da nossa no tempo ou no espaço. Não me parece que deva ser mais difícil traduzir um haicai do que um poema provençal ou um poema árabe. Quando se lê muita literatura de um período ou civilização, percebe-se a rede de referências em que se apóia cada novo texto. A tradução deve levar em conta esses efeitos de sentido, isto é, o que, no impacto de um texto sobre o leitor, provém das alusões que ele faz a outros, pelo aproveitamento que faz dos que o precederam. Um texto é sempre um ponto de tensão dentro de um conjunto de outros textos: o leitor da época tinha costumes e referências com as quais o texto se combinava ou colidia; os leitores das épocas seguintes tinham também os seus costumes e referências, que incluíam, modificados e selecionados, os costumes e referências do tempo da produção da obra. Quando leio um haicai japonês, uma parte do que percebo provém de eu conhecer um pouco da tradição poética japonesa, de ter lido muitos haicais e textos sobre haicai. Na minha tradução, é claro, vou tentar reproduzir os efeitos de sentido que percebi. Mas isso não quer dizer que não precise complementar a tradução com notas de rodapé, para que o leitor possa perceber de onde vem o brilho, a especificidade ou o caráter de obra-prima do haicai que tem ante os olhos. Sucede o mesmo com os poemas medievais, por exemplo. E com a poesia das civilizações clássicas. Mas como a tradição clássica e medieval é a nossa tradição, esses textos parecem mais compreensíveis.



Wanderson - A moda do haicai entre nós, como o senhor frisa no estudo O Haicai no Brasil, “precede de muitos anos essa nova onda de celebração do Japão tecnológico”. Apesar disso, resquícios de visões acerca do haicai acentuadamente formalista ou mesmo eivadas de exotismo ainda são recorrentes. Esse seria o motivo, feitas as exceções pontuais, do baixo nível dos haicais produzidos entre nós? É preciso um conhecimento denso da cultura japonesa para se produzir bons haicais?

Franchetti - O haicai tem sido praticado no Brasil principalmente em três vertentes. Para muitos, é uma forma fixa, uma espécie de minúsculo soneto. É a vertente que deriva de Guilherme de Almeida e faz do haicai um primo da trova. Para um outro grupo bastante significativo, o haicai é um registro de uma vivência “zen”, de um jeito de estar no mundo. Para outros, é uma forma poética tradicional japonesa que precisa ser aclimatada e adaptada ao Brasil como já se aclimataram as artes marciais e a culinária e se está adaptando a arte das flores. O exotismo e o tecnicismo são assim fatais, eu creio. Quanto à qualidade média da produção de haicais no Brasil, é certo que muita gente a tem acusado de ser baixa. Mas eu não acho que valha a pena repisar esse ponto. Por dois motivos. O primeiro é que o baixo nível da maioria dos haicais não tem nada de excepcional. Na poesia que não é haicai, na poesia brasileira, digamos, radicada no mainstream da literatura ocidental, 99% da produção atual é de baixo nível, e sequer merece consideração crítica. Basta andar pelas páginas da internet para ver o que se produz e reproduz como poesia contemporânea brasileira. E mesmo a produção publicada em livro precisa ser muito peneirada para que sobre nas mãos algo de interesse. O segundo motivo é que o haicai, em qualquer das vertentes indicadas acima, se apresenta como uma atividade orientada, uma prática que se pode e se deve estudar e aprender. Realizam-se hoje, no Brasil todo, muitas oficinas de haicai. Por isso, pelo seu caráter de prática coletiva e algo escolar, o haicai tem público fiel e interessado. Daí que se produzam muitos textos e se publiquem muitos livros ainda sem a qualidade desejável. Há, portanto, duas formas de ver a grande quantidade de haicais produzida hoje e, nela, a predominância de haicais ruins: uma é lamentar e desejar que se publique menos; outra é ver aí um índice da popularidade e do interesse do haicai hoje, e esperar que, com a prática e com os bons livros que também se publicam, o nível vá melhorando com o tempo. Quanto à última parte da pergunta, se é preciso um conhecimento denso da cultura japonesa para produzir um bom haicai, eu tendo a responder pela negativa. O haicai é um caminho, um jeito de estar na linguagem e no mundo, mas não creio que seja preciso saber japonês ou estudar profundamente os textos budistas para fazer bom haicai. Como não é preciso um conhecimento denso da cultura japonesa para ser um bom lutador de judô ou de karatê, ou para ser uma pessoa capaz de fazer ikebana. Algum conhecimento é necessário, principalmente para poder sentir a diferença, para perceber o jeito de olhar e de registrar a sensação que respondem pela especificidade do haicai. Décio Pignatari, contrapondo-se a um conferencista que afirmava que era impossível compreender a gravura japonesa sem conhecer o Zen e a história da cultura japonesa, afirmou, certa vez: “não será preciso que eu vista uma armadura medieval para entender uma igreja românica, nem tampouco que me enfie numa roupagem de samurai para saber ver um kakemono”. Quanto a mim, nem tanto ao mar, nem tanto à terra. A leitura dos clássicos, a percepção do quadro de referências religiosas e culturais, a observação do que o poeta disse numa determinada situação em que outras coisas podiam ou deviam ser ditas – tudo isso compõe, à volta das breves linhas do haicai, um quadro de estranhamento, em relação à nossa própria época e tradição, que é, a meu ver, salutar. Em suma, penso que o haicai vale como exercício de alteridade, e que cabe a cada um definir qual a porção de conhecimento ou idealização da cultura japonesa que é necessária para produzir o efeito de deslocamento que sempre se busca no cultivo de uma arte exótica, distante de nós no tempo ou no espaço.


[continua...]

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