amálgama #5 - Os Cinemas

- Publicado originalmente em amálgama #5, agosto de 2004.


OS CINEMAS

por Afonso Ligório Pires de Carvalho




Nos anos 40, em Teresina, o ambiente preferido da meninada para brincadeiras era a praça João Luiz Ferreira. Ali, a garotada se soltava. Os meninos pobres, de rua, sem parques, sem local adequado para recreação, juntavam-se aos chamados “filhos de família” na praça João Luiz Ferreira. Primeiro ficavam de longe observando, depois, à maneira de todas as crianças, se aproximavam de mansinho e pegavam carona no divertimento dos “ricos”. Alguns, com rapidez, se entrosavam com o grupo a tal ponto de participar nos dias seguintes com naturalidade, sem discriminação, ou objeção. Assim aconteceu com Cassiano, Luepan, De Brito, menino do Douro, Tibúrcio e outros, hoje pais de família exemplares.

Os entretenimentos em geral se limitavam a jogos de futebol. Grande número, porém, preferia brincar de cinema, imitando os artistas dos seriados e filmes de cowboys, como eram vistos pela gurizada na tela do Royal.

O Royal poderia ser considerado, na época, talvez a mais mal-cuidada casa de projeção de filmes do país, com uma platéia também por demais bagunceira. Aos nossos olhos de garotos, no entanto, aquele cinema era um templo de diversão domingueira. A deusa de Joba. Flash Gordon, Perigos de Paulina, Tarzan, ou um seriado de Buck Jones, ninguém podia perder.

Lembro-me dos seus precários e desconfortáveis assentos de tábuas corridas pregadas sobre troncos de carnaubeira, enfileirados à maneira dos bancos de igreja. Os espectadores, ao chegar, cuspiam no banco da frente e assim por diante, na intenção egoísta de evitar que alguém se sentasse e impedisse a livre visão da tela. Os que entrassem mais tarde levavam, por cautela, um papelão com o qual forravam o banco para proteger a roupa domingueira. Mulher não freqüentava a sessão, que começava às 17h30, terminava às 19h30, e só exibia seriados. Os palavrões e deboches da platéia feriam a sensibilidade feminina.

Barulhenta máquina de péssimo som projetava os filmes, com intervalos entre as partes, quando as luzes se acendiam. A precariedade técnica do cinema irritava a platéia sempre irrequieta e pronta a revidar com assobios e palavras de baixo calão a cada intervalo. Nas interrupções mais demoradas, atiravam para frente o que tivessem ao alcance da mão, geralmente, juá, fruto do juazeiro, que quase todos conduziam nos bolsos, como munição. Felizmente, eram pequenos e macios. Não usavam pedras. Reiniciada a projeção, o silêncio retornava à sala, antecedido de nervosos psius.

Dos quatro cinemas de Teresina dos anos 40, esse “poeira”, com todas as mazelas e desconforto, era o preferido da meninada de todas as classes sociais. Daí a extraordinária freqüência aos domingos. O ingresso custava 60 centavos, isto é, 50% mais barato que em qualquer outro cinema.

O gerente da casa, que também servia de porteiro, chamava-se Bechara, um árabe baixote, um tanto barrigudo, cara de tédio, barba por fazer, nome que a platéia em coro gritava nos intervalos imprevistos, acrescentando palavrões, como se o árabe fosse responsável pela precariedade da técnica de projeção.

Bechara falava mal o português, mas sabia controlar com habilidade a meninada entusiasmada que o obedecia. Tinha paciência, embora não fizesse concessão a penetras. Vez por outra, porém, era flagrado ao permitir o acesso grátis de algum menino maltrapilho que ficava na calçada à frente da porta principal, a pedir com os olhos para também ver o seriado.

O Olímpia, na praça Rio Branco, de propriedade da firma Martins e Omatti, contava com freqüência mais selecionada. O Teatro 4 de Setembro estava arrendado a um cidadão igualmente de origem árabe, com o nome brasileiro de Alfredo Ferreira. Ainda no início dos anos 40, foi aberta nova casa de exibição de filmes, o Rex, na praça Pedro II, dotada de “moderno sistema de som”, alta novidade técnica. Em seguida o grupo Cícero Ferraz construiu o cine São Luiz, casa de exibição mais sofisticada, defronte ao Clube dos Diários. Não obstante apresentar-se como o melhor cinema da cidade, ou talvez por isso, deixou de funcionar pouco depois.



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Afonso Ligório Pires de Carvalho é jornalista, contista e romancista.
Autor, dentre outros, de Capitania do Açúcar.

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