- Publicado originalmente em amálgama #5, agosto de 2004.
“POESIA É NUNCA SE ALFABETIZAR”
Wanderson Lima entrevista Fabrício Carpinejar
[continuação...]
Wanderson - O diálogo com Manoel de Barros em seu último livro, Biografia de uma Árvore, é notório e foi ressaltado por críticos como Miguel Sanches Neto. Até que ponto esse diálogo foi relevante? Qual a importância, para nossa literatura, da produção literária de Manoel de Barros?
Carpinejar - Um poeta precisa ser influenciado principalmente pelos seus defeitos. Isso é estilo. Sou também influenciado por aquilo que não foi escrito. Manoel de Barros é um grande escritor, peculiar, explorando os desvios da língua já anunciados por Raul Bopp e Guimarães Rosa. Faz a catequese do traste, a pedagogia do ínfimo. Defende uma teologia do abandono, pós-industrial. Sua estética simula o nível da criança enquanto está aprendendo. Recupera a primeira dentição da linguagem. Realiza uma poética da fé, religiosa, que reivindica a crença de que todos partilham das mesmas convicções. Barros infantilizou a forma poética, não se restringindo a tematizá-la. Propõe que o objeto seja de todos não sendo de ninguém. Minha poesia é mais desconfiada, cínica, não quer o deslumbramento, mas o assombro, algo entre a alegria e a dor. Quero misturar os sentimentos: chorar rindo e rir chorando. Não falo como uma criança, porém percorro as diferentes idades do homem em um mesmo livro.
Wanderson - Há uma forte unidade em sua obra, não só entre os poemas de um mesmo livro mas entre um livro e outro. Parece-me, porém, que seu primeiro livro, o surpreendente As Solas do Sol, foge dessa unidade, é uma experiência a parte...
Carpinejar - Apronto os livros simultaneamente. Não é um processo estanque, individualizado. Desdobro pensamentos em uma única matriz. Meu núcleo é a família e suas relações de poder e despoder, influência e desatino. São manuscritos emendados, embaralhados na escrivaninha, manchados pela luz líquida. Em As Solas do Sol, existem metáforas fechadas que aos poucos foram se abrindo nas demais obras. É um livro à parte, mas com extrema significação no todo. Fui raspando minha estréia, retirando o que tentava me esconder, desvelando o que ainda não estava suficientemente formulado. O personagem de As Solas do Sol, Avalor, pode ser o mesmo de Um Terno de Pássaros ao Sul, Terceira Sede e Biografia de uma Árvore. Uma espécie de Jó sem fé. Ficou três vezes viúvo: da esposa, dos amigos e de seu tempo. É o último da fila. Busca um lugar seguro para guardar sua memória. Está procurando até hoje.
Wanderson - Em “Um Terno de Pássaro ao Sul”, você conseguiu realizar um mea culpa sem se deixar contaminar pelo pathos romântico, o que é realmente admirável. Foi o livro mais difícil de ser escrito?
Carpinejar - Um Terno de Pássaros ao Sul foi o livro mais difícil, pois o considero um divisor de águas da minha literatura O trunfo dele consiste em não ser derrotista. É muito fácil cativar pela dor, viciar-se na depressão, exaltar o sofrimento. O romantismo se espalha pior do que a gripe. O difícil – e estimulante – é superar as adversidades e cantar a alegria que pode existir no mais banal. No início, o filho pretende condenar o pai pródigo. Entretanto, descobre que está assim se condenando. A amizade se fortalece pela compreensão. Compreender é perdoar de certo modo. Eu corria o risco de ser confessional. Armei-me, portanto, da ironia, conciliando o apelo dramático com a autocrítica. O que proponho são “conficções”, confissões inventadas. Sou um perfeccionista pelas imperfeições. Quero mudar o senso comum de lugar. Procuro o avesso e a inversão, corromper as certezas. Fazer com que a palavra não morra no costume. Quem pensa que a vida está ganha, não está. Quem pensa que está perdida, também não está. Literatura é indefinição, tensão, desejo, estar na contracorrente do óbvio, caminhar do fim ao início. Poesia é nunca se alfabetizar. Renuncio à erudição para desaprender e perceber cada pessoa como um novo dialeto. Renuncio ao conhecimento para me desconhecer. Quero desescrever cada vez mais, desaparecer para que quem está lendo se enxergue. Que ninguém repare que a poesia foi escrita. Meu nome não é um endereço. O autor precisa se ausentar do livro para se fazer presente por inteiro. O crítico Maurício Melo Júnior talvez tenha descoberto o grande duelo em minha obra: “do anônimo com o inonimável”.
Wanderson - Em um artigo seu, Antecedentes Criminais Poéticos, você tece importantes reflexões a respeito do desinteresse do jovem pela poesia. Por que o jovem lê tão pouco textos poéticos? Que parte da culpa cabe à escola?
Carpinejar - A poesia não é posta na escola como criação, porém apenas como leitura e catalogação de gêneros e escolas. Persiste uma interpretação mórbida da vida do autor em detrimento da obra. Sabe-se mais das doenças de Castro Alves do que de suas odes. Esse é o grande erro. É impraticável criar um laço com aquilo que não é exercitado. Ninguém nasce tocando violão. O jovem tem uma vocação natural à poesia, procurando se expressar por diários, cartas e agendas antes de qualquer outro gênero. Infelizmente, não recebe o incentivo, o exercício da sensibilidade, a intimidade do convívio, que insira o verso como algo espontâneo, real, funcional e vivo. O sistema educacional brasileiro trata a poesia como um luxo ou um acessório. Pela desinformação, ela termina sendo sinônimo de tumba formal ou de derramamento, catarse e atentado emocional ao pudor. Poesia é o contrário: contenção e ritmo, idéias e música, relâmpago da voz.
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