- Publicado originalmente em amálgama #5, agosto de 2004.
“POESIA É NUNCA SE ALFABETIZAR”
Wanderson Lima entrevista Fabrício Carpinejar
Durante alguns meses, troquei com Fabrício Carpinejar alguns e-mails em que discutimos a poesia alheia e, às vezes, a nossa. Surpreendi-me como, em seus breves e-mails, Carpinejar conseguia ser a um só tempo crítico e poético. A essa época, já havia lido a histórica entrevista que o autor de "As Solas do Sol" (1998) havia concedido, na revista eletrônica Agulha, ao crítico e poeta Floriano Martins e senti que valeria a pena fazer-lhe outros questionamentos, quiçá completares às indagações argutíssimas de Floriano. O resultado são essas nove perguntas que seguem e que Capinejar respondeu, via e-mail, pelo mês de agosto de 2003.
Fabrício Carpi Nejar nasceu em Caxias do Sul (RS), em 1972. É poeta e jornalista. Mestre em Literatura Brasileira pela UFRGS. Publicou cinco livros de poemas, o mais recente, "Caixa de Sapatos" (2003), pela Companhia das Letras. Recebeu diversos prêmios literários, entre eles o Prêmio Internacional ‘Maestrale - San Marco’ 2001, Marengo d’Oro (5ª Edição), de Gênova (Itália), categoria obra em língua estrangeira, com poemas de "Um Terno de Pássaros ao Sul" e o Prêmio Nacional Olavo Bilac 2003, da Academia Brasileira de Letras, com "Biografia de uma Árvore", escolhido o melhor livro de poesia de 2002.
Wanderson - Ernesto Sábato, em um de seus ensaios, diz que em nossa época um escritor que queira se passar por profundo deve ser obscuro, pois temos associado clareza à superficialidade. Esse comentário de Sábato parece ter a ver com uma linha de nossa poesia que engloba Bandeira, Quintana, Manoel de Barros e você, verdadeiras vítimas desse julgamento equivocado, patrocinado principalmente por certos vanguardismos formalistas afeitos a experimentações herméticas as quais só é possível a compreensão se estivermos por dentro de seus pressupostos teóricos. O que pensa sobre isso?
Carpinejar - Eu penso que o poeta não deve ir ao fundo da linguagem, mas permanecer em vigília na superfície. A superfície é densa e expressiva, onde o mundo nos assiste. O que me importa é o cheiro da rua, da casa, das roupas, remexer no desperdício. Estar tão próximo do leitor que ele me sinta longe. O fundo é isolamento e nos afasta da vulnerabilidade. Desde criança, tenho uma empatia pela fraqueza. Sempre tentei amparar quem estava desfocado, deslocado, às margens. Minha linguagem é um esforço de diplomacia entre a imaginação e a realidade, entre os que as pessoas pensam e o que elas são. Criou-se uma crença de que a boa poesia é aquela que não é compreendida. Quanto mais difícil, melhor a criação. Não concordo. A poesia precisa falar para todos os tempos em qualquer tempo. O tempo tem que estar vivo no verso. O que adianta dizer para não dizer? O que adianta apenas preencher um lugar na estante? O que adianta escrever para si? Melhor então é nunca publicar. Escrevo como doação, buscando transferir meu sangue. Minha única vanguarda é acompanhar minha morte a distância. Deixar que ela se aproxime. Enquanto isso, vou fazer da vida a minha mais alta despedida. O verdadeiro poeta não precisa de um prefácio para ser entendido. A sensibilidade tem urgência e não fica esperando pressupostos teóricos.
Wanderson - Mário Faustino, quando de sua página no JB, reclamou certa vez que o Brasil estava cheio de “Drummondzinhos”. Talvez hoje ele dissesse que está cheio de “Cabralzinhos”...
Carpinejar - Mario Faustino era um leão (crítico) com coração de ave (poeta). Acredito que Cabral teve muitos imitadores em vida. Mas é impossível imitar Cabral, o autor brasileiro com o melhor sistema anti-vírus. Houve até quem conseguisse cotejá-lo na forma, mas sem nunca atingir sua implacável visão de mundo. Imitar Cabral é tentar ser gago. Tudo não passará de uma caricatura. A poesia brasileira contemporânea está se libertando dos referenciais da última metade do século XX. Mais solta, convicta, menos experimental, capaz de inaugurar sua fome sem precisar recorrer à metalinguagem. Vários autores começam a aparecer com intensidade, não transformando seus livros em teses acadêmicas e procurando sentir o peso das contradições e paradoxos de nossa época.
Wanderson - O crítico Hidelbrando Barbosa Filho afirma com lucidez: “Poeta que pensa, Carpinejar, no entanto, não busca seu pensamento fora de sua vivência pessoal. À semelhança de Rainer Maria Rilke, nas Elegias de Duíno, sua convocação metafísica nasce do pacto com a vida, do olhar sobre as coisas, do olhar por dentro das coisas, e não exteriormente das doutrinas filosóficas que aí circulam.” Você concorda com os que afirmam que os poetas romperam “o pacto com a vida” e passaram a produzir uma poesia muito literalizada e auto-referente?
Carpinejar - Concordo. Centenas de poetas passaram a problematizar o poema, com medo da influência de Cabral, Bandeira e Drummond. A poesia virou um divã, uma terapia. Ao invés de propor um pacto com a vida, regurgitava a impossibilidade de se fazer um poema. Basta pegar aleatoriamente
qualquer iniciante das últimas décadas, sempre existirá um verso pedindo desculpas por não conseguir vencer a insônia. Há gente que ficou cega com a página em branco. Daí que os leitores se afastaram dos poemas pela ausência de identificação e foram encontrar ressonância biográfica nas letras da MPB e do rock. Agora o poema voltou a ser música, sentido e olhar demorado sobre as coisas. Retoma-se os grandes temas a partir das pequenas delicadezas e irrupções do cotidiano.
Wanderson - O cânone literário brasileiro precisa ser reavaliado?
Carpinejar - Sim. É um crime deixar de fora do cânone Cecília Meireles, Murilo Mendes, Jorge de Lima e toda uma poesia filosófica e mística. A crítica tentou dilapidar nossa herança barroca e visionária. A necessidade de engajamento nos anos 70 e 80 criou uma obrigação aos poetas de transformar o mundo. O que parecia mais subterrâneo e religioso, ficou de lado. Uma tônica realista e ateísta impregnou o cânone brasileiro, dificultando o acesso a alguns importantes precursores de nossa brasilidade. O lirismo acabou deslizando para os epigramas, ao humor, aos trocadilhos, aos haicais preguiçosos e aos anúncios publicitários. Do protesto, a poesia virou brincadeira.
Wanderson - Jorge Luis Borges parece ter sido muito importante em sua formação, como transparece especialmente em seus dois últimos livros...
Carpinejar - Ainda é importante. O que mais gosto dele é a espessura do pensamento. Ninguém lê Borges sem mudar o tom de voz. Ele exige uma projeção fônica de fábula, de vatícinio e história. Borges controlava a paixão durante a formulação poética para que ela despontasse somente na leitura, na oralidade. Ele acreditava que a grande magia estava em reunir novamente a narração e o poema, dizia que os leitores estavam sedentos pela épica. Nesse sentido, meus livros formam um romance versificado, um desdobramento de um enredo, feito pela velocidade das metáforas.
[continua...]
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