desenho de Adriano Lobão Aragão
- Publicado originalmente em amálgama #4, agosto de 2003.
[...continuação]
Iberismo e Epigrama na Função Épica Dobalina
por Ranieri Ribas
O estudo de Odylo Costa interessa-nos sobretudo pelo emprego do termo ecumênico para qualificar a poesia de H. Dobal, emprego este empreendido: i) para enfatizar o caráter universal do canto telúrico dobalino; ii) para afirmar-lhe o caráter mundano e fenomenológico, em contraposição às práticas nefelibatas da poesia selênica e por decorrência; iii) para negar a poética de Hindemburgo como uma concepção do mundo e afirmá-la enquanto uma poesia do mundo, da cousa em si, positiva e fenomênica (não uma poesia de concepções sobre os objetos mas um inventário de objetos e vivências mundanas). Este realismo fenomenológico, Odylo captou na belíssima passagem “chão de pedra, piçarra, escalvado vermelho e cru onde as carnaúbas sacodem os braços amputados [...] porque este bestiário inclui sempre o homem, ligado sempre a sua condição animal”.
Odylo, contudo, concentra sua argumentação no processo inventivo da obra dobalina, processo este concretizado no tratamento singular do épico:
“na solução encontrada por Dobal para a narrativa épica [...] haverá um caminho novo, partilhante ao mesmo tempo das técnicas do poema escrito e da arte dramática, [...] o que é novo em Dobal é o jogo simultâneo do texto histórico e do texto poético, em ponto e contraponto”
Certamente, o prefaciador pretendia ressaltar nesta passagem o aspecto declamatório e recitativo na épica de Hindemburgo. Staiger ressalta em Homero este mesmo caráter declamatório, que em Dobal se diferencia do modo ortodoxo pela oralidade poemática atuante como elemento não-neutro, ou seja, como recurso dinâmico para compreensão semiótica e semântica dos níveis de significado da estrutura poética ali encerrada, na mesma proporção em que os recursos tipográficos e espaciais operacionalizam a leitura de algumas estruturas poéticas visuais. Esta ênfase oral, portanto, imposta ao poema de função épica, reafirma a tradição homérica, cujos textos eram declamados na àgora como insignes do espírito e da cultura grega. Na obra dobalina porém, a marca declamatória atua não apenas como função hínica e civil mas também poemática e estética, ou seja, atua como parte do fundamento poético da obra.
Esta discussão sobre o caráter civil da poesia homérica revolve-nos à temática social tantas vezes reafirmada na poesia de Dobal. A implicação social dobalina, contudo, constitui-se em mais uma redução do significado lato da função épica narrativa inserida em uma tradição da América Ibérica, mais especificamente da tradição nordestina. Se identificarmos sociologicamente esta tradição podemos afirmar que a temática social é uma variante subordinada à narrativa do ethos. Richard Morse, em seu fundamental O Espelho de Próspero atribui sinal positivo à singularidade cultural e política do republicanismo rousseauniano e da sociabilidade comunitarista da América Ibérica6 (denominação mais precisa que América Latina). Esta seria uma tradição, nas palavras de Angel Rama, em que “o ideal precedeu o material, o signo a coisas; o traçado geométrico do plano, as nossas cidades.[7]”. Neste sentido, segundo Morse, é que os discípulos de Própero, Ariel e Calibã[8] (metáforas da personalidade confusa da América Ibérica, dividida entre o suposto incivismo selvagem de Calibã e o civismo de excelente-aprendiz encarnado por Ariel), após tornarem-se independentes são obrigados a falar sua própria linguagem. Ariel é um epígono inculcado pelas lições do mestre e sua personalidade serigráfica o torna um títere. A literatura não escapa a esta análise, como bem disse Antônio Candido (Literatura e Subdesenvolvimento) ao analisar:
“em sua formação as nossas literaturas são essencialmente européias, na medida em que continuam a pesquisa da alma e da sociedade definida na tradição das metrópoles. Tanto mais quando foram transpostas à América na era do Humanismo, isto é, quando o homem europeu intensificava o seu contato com as fontes greco-latinas[...]”
Se a literatura da América Ibérica tem sua faceta numênica, europeizada, sermo nobilis, representada na figura de Ariel, por outro lado, ela alimenta também sua faceta Calibã, instruída por uma linguagem própria, avessa ao signo transplantado do humanismo europeu. Esta mentalidade calibânica instruiu uma tradição através da recusa sociológica do narrador ao vocábulo civil e sublime, porque incivil é sua gente (“sua ração de vida o homem vê minguando”); por conseguinte, tal recusa se materializa no tratamento narrativo em consonância e empatia à condição animal do bicho-homem e sua realidade estiolada. A língua do narrador no épico dobalino, portanto, é a língua de Calibã, autóctone. E sua voz é tão crua e árida que nos soa como continuidade das paisagens que retrata, como uma poética isomórfica do vocábulo à imagem. Soa-nos como continuidade da tradição-mor da linguagem sertânica e agreste dos filhos do Equador: Graciliano Ramos, João Cabral de Melo Neto, Ariano Suassuna, Gerardo Mello Mourão[9], Euclides da Cunha.
A voz de Calibã não é uma temática social, mas apenas a linguagem, a única, capaz de pronunciar o ethos de um povo, piauiense, nordestino, o outro mouro da América e sua canção pentatônica. Este argumento contra o tematismo social nos importa porque afasta qualquer imposição ideológica à poesia dobalina, não afeita a concepções e transcendências, mas a objetos tangíveis. H. Dobal é antes um cantador da América Ibérica. É autor do canto dos incivis que preferem falar sua própria língua a crer na superioridade dos artefatos de Próspero.
Hegel, ao tratar do caráter geral da poesia épica refere-se ao épico epigramático[10] que “diz simplesmente o que é a coisa” e onde “o homem não expressa ainda o seu pensamento pessoal, mas olha em torno de si, e acrescenta ao objeto uma breve explicação relativa à essência da coisa”. Este épico epigramático ao qual Hegel trata, constitui-se numa das formas imperfeitas do gênero, juntamente com os adágios e as gnomas em geral. Destarte, prossegue o filósofo:
“mas trata-se de gêneros híbridos, na medida em que, mantendo o tom geral de um determinado gênero, aplicam este tom a um assunto que não ingressa completamente neste mesmo gênero, do que resulta uma espécie de compromisso, um gênero imperfeito, que pode imitar também o gênero lírico. As locuções deste gênero (epigramas, gnomas, elegias), fragmentárias e isoladas, podem todavia chegar a ser reunidas, para formar um todo mais vasto, uma totalidade de caráter propriamente épico, logo que torne presente à consciência não um estado de alma ou uma ação dramática, mas uma esfera definida da vida real[...]”
A forma imperfeita do épico pode camuflar sua totalidade em fragmentos líricos de forma que, preservando um ou mais caractere épico, o gênero literário híbrido, ainda que indefinido, atue como uma função epopéica, seja em seu critério epigramático, seja em suas gnomas (não sendo este último o caso da poesia de Dobal). Isto se coaduna à tese fundamental aqui desenvolvida, afirmativa de que a poética de H. Dobal diz "o que é a coisa". Por outro lado, corroborando ainda a tese tangencial do caráter Calibã na poesia de Hindemburgo, Hegel afirma que “O verdadeiro poema épico pertence essencialmente a essa época intermediária em que um povo, saindo de sua ingenuidade e sentindo o espírito despertar, se põe a criar um mundo que lhe seja próprio e no qual se sente à vontade”. O canto dobalino afirma-se como epigrama de uma Kulchur e se contrapõe aos discursos que pretendem extorquir-lhe a beleza pelo uso equivocado dos conceitos. É um canto de cactos e talictres antilíricos, de terra árida. E isto é a essência de seu povo. Esperamos, ex nunc, que este ensaio incite os literatos a contribuírem na formação de uma fortuna crítica dobalina, que como outras questões intelectuais, espera por ação, nesta república onde tudo está por fazer.
notas
[1] Antonio Candido, em Formação da Literatura Brasileira.
[2] Jürgen Habermas, em Mudança Estrutural da Esfera Pública.
[3] Não é pretenso aqui analisarmos a poética dobalina como variável textual de suas supostas influências. Contudo, devemos ressaltar a nítida afinidade entre o caráter lírico-realista do segundo Yeats e o realismo fenomênico em Dobal. Refiro-me ao Yeats pós-Pound, desapegado da beleza mística outrora cortejada, enamorado a uma poética da raça, do belo estiolado : “To write for my own race/and for the reality” (escrever para minha própria raça e para a realidade). Não por acaso este Yeats epigrafou o Tempo Conseqüente.
[4] Haroldo de Campos refere-se assim aos critérios daqueles que pretendiam inserir forçosamente a poesia de João Cabral no rol da Geração-45. Ver o ensaio “O Geômetra engajado” incluso no livro Metalinguagem e outras Metas, editora Perspectiva.
[5] Staiger afirma a respeito da invalidação, pelo maniqueísmo, de uma narrativa em sua qualificação épica que “[...] a crítica de Xenófanes[...] debate-se com desvelo contra os ensinamentos divinos e a moral da poesia homérica. ‘Homero e Hesíodo atribuíram aos deuses tudo que entre os homens é blasfêmia e vergonha: roubos, adutérios, traições mútuas’. Aqui o bem e o mal já se desligaram das figuras e se tornaram valores abstratos.”(pág-113). O maniqueísmo da épica de Dobal está fundado em uma base cultural religiosa, ou seja na herança católico-judaica que divide o mundo entre anjos e demônios, e ainda em uma ausência de relativismo antropológico, o que permite julgar uma época a partir da outra ignorando as disparidades nas concepções de mundo entre passado e presente (refiro-me especificamente ao poema ‘El Matador’). Este, contudo, é um problema da aplicação histórico-antropológica do relativismo filosófico pirrônico, alhures abordado por Teresinha Queiroz. Este viés analítico não nos é pretenso aprofundar aqui.
[6] A conceituação do épico em Staiger constitui-se numa ideologia literária homóloga ao discurso ontológico fundamental de Heidegger, dái sua rigidez em admitir Homero, e somente Homero, como modelo puro da poesia épica.
[7] Esta abordagem relativa ao comunitarismo rousseauniano em Dobal, aparentemente destoante, nos fundamenta quanto ao argumento da filiação iberista do autor. Devemos esclarecer os desavidos que a epígrafe de Adolf Hitler, inclusa no poema ‘unreal city’ do livro A Provínicia Deserta não deve ser confundida com uma suposta simpatia ao nazi-fascismo. A frase “passou o dia da felicidade individual”, do próprio Hitler, apenas reafirma os valores de uma cultura Ibérica comunitarista que tem em comum com o fascismo um programa antiliberal e antiindividualista. E este é o único aspecto que Dobal pretendia enfatizar.
[8] Apud. Luiz Werneck Vianna. A Revolução Passiva — Iberismo e Americanismo no Brasil.
[9] Ver The Tempest, de Shakespeare.
[10] Ressaltemos a metodologia poundiana em Gerardo, que, execrado por conta da declarada filiação ao Integralismo, tem sua magnífica obra também pouco estudada. O próprio Ezra Pound disse “Em toda minha obra, o que tentei foi escrever a epopéia da América. Creio que não consegui. Quem conseguiu foi o poeta de O País dos Mourões.”
[11] O conceito Hegeliano de epigrama não se restringe ao sinônimo dicionarizado da palavra, aprofunda-se na averiguação da raiz etimológica da palavra: “epigrama, palavra da mesma família de epígrafe e epigrafia, a qual na verdadeira acepção quer dizer letra gravada sobre colunas, monumentos, ofertas votivas e outros objetos [...] o epigrama diz simplesmente o que é a coisa”. É precisamente nesta acepção que aplicamos o conceito ao épico dobalino. Cf. Hegel, Estética. Coleção Filosofia e Ensaios. Guimarães e Ca editores. Tradução Álvaro Ribeiro.
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Ranieri Ribas é poeta e sociólogo,
autor de Os Cactos de Lakatus (amálgama, 2003).
- Publicado originalmente em amálgama #4, agosto de 2003.
[...continuação]
Iberismo e Epigrama na Função Épica Dobalina
por Ranieri Ribas
O estudo de Odylo Costa interessa-nos sobretudo pelo emprego do termo ecumênico para qualificar a poesia de H. Dobal, emprego este empreendido: i) para enfatizar o caráter universal do canto telúrico dobalino; ii) para afirmar-lhe o caráter mundano e fenomenológico, em contraposição às práticas nefelibatas da poesia selênica e por decorrência; iii) para negar a poética de Hindemburgo como uma concepção do mundo e afirmá-la enquanto uma poesia do mundo, da cousa em si, positiva e fenomênica (não uma poesia de concepções sobre os objetos mas um inventário de objetos e vivências mundanas). Este realismo fenomenológico, Odylo captou na belíssima passagem “chão de pedra, piçarra, escalvado vermelho e cru onde as carnaúbas sacodem os braços amputados [...] porque este bestiário inclui sempre o homem, ligado sempre a sua condição animal”.
Odylo, contudo, concentra sua argumentação no processo inventivo da obra dobalina, processo este concretizado no tratamento singular do épico:
“na solução encontrada por Dobal para a narrativa épica [...] haverá um caminho novo, partilhante ao mesmo tempo das técnicas do poema escrito e da arte dramática, [...] o que é novo em Dobal é o jogo simultâneo do texto histórico e do texto poético, em ponto e contraponto”
Certamente, o prefaciador pretendia ressaltar nesta passagem o aspecto declamatório e recitativo na épica de Hindemburgo. Staiger ressalta em Homero este mesmo caráter declamatório, que em Dobal se diferencia do modo ortodoxo pela oralidade poemática atuante como elemento não-neutro, ou seja, como recurso dinâmico para compreensão semiótica e semântica dos níveis de significado da estrutura poética ali encerrada, na mesma proporção em que os recursos tipográficos e espaciais operacionalizam a leitura de algumas estruturas poéticas visuais. Esta ênfase oral, portanto, imposta ao poema de função épica, reafirma a tradição homérica, cujos textos eram declamados na àgora como insignes do espírito e da cultura grega. Na obra dobalina porém, a marca declamatória atua não apenas como função hínica e civil mas também poemática e estética, ou seja, atua como parte do fundamento poético da obra.
Esta discussão sobre o caráter civil da poesia homérica revolve-nos à temática social tantas vezes reafirmada na poesia de Dobal. A implicação social dobalina, contudo, constitui-se em mais uma redução do significado lato da função épica narrativa inserida em uma tradição da América Ibérica, mais especificamente da tradição nordestina. Se identificarmos sociologicamente esta tradição podemos afirmar que a temática social é uma variante subordinada à narrativa do ethos. Richard Morse, em seu fundamental O Espelho de Próspero atribui sinal positivo à singularidade cultural e política do republicanismo rousseauniano e da sociabilidade comunitarista da América Ibérica6 (denominação mais precisa que América Latina). Esta seria uma tradição, nas palavras de Angel Rama, em que “o ideal precedeu o material, o signo a coisas; o traçado geométrico do plano, as nossas cidades.[7]”. Neste sentido, segundo Morse, é que os discípulos de Própero, Ariel e Calibã[8] (metáforas da personalidade confusa da América Ibérica, dividida entre o suposto incivismo selvagem de Calibã e o civismo de excelente-aprendiz encarnado por Ariel), após tornarem-se independentes são obrigados a falar sua própria linguagem. Ariel é um epígono inculcado pelas lições do mestre e sua personalidade serigráfica o torna um títere. A literatura não escapa a esta análise, como bem disse Antônio Candido (Literatura e Subdesenvolvimento) ao analisar:
“em sua formação as nossas literaturas são essencialmente européias, na medida em que continuam a pesquisa da alma e da sociedade definida na tradição das metrópoles. Tanto mais quando foram transpostas à América na era do Humanismo, isto é, quando o homem europeu intensificava o seu contato com as fontes greco-latinas[...]”
Se a literatura da América Ibérica tem sua faceta numênica, europeizada, sermo nobilis, representada na figura de Ariel, por outro lado, ela alimenta também sua faceta Calibã, instruída por uma linguagem própria, avessa ao signo transplantado do humanismo europeu. Esta mentalidade calibânica instruiu uma tradição através da recusa sociológica do narrador ao vocábulo civil e sublime, porque incivil é sua gente (“sua ração de vida o homem vê minguando”); por conseguinte, tal recusa se materializa no tratamento narrativo em consonância e empatia à condição animal do bicho-homem e sua realidade estiolada. A língua do narrador no épico dobalino, portanto, é a língua de Calibã, autóctone. E sua voz é tão crua e árida que nos soa como continuidade das paisagens que retrata, como uma poética isomórfica do vocábulo à imagem. Soa-nos como continuidade da tradição-mor da linguagem sertânica e agreste dos filhos do Equador: Graciliano Ramos, João Cabral de Melo Neto, Ariano Suassuna, Gerardo Mello Mourão[9], Euclides da Cunha.
A voz de Calibã não é uma temática social, mas apenas a linguagem, a única, capaz de pronunciar o ethos de um povo, piauiense, nordestino, o outro mouro da América e sua canção pentatônica. Este argumento contra o tematismo social nos importa porque afasta qualquer imposição ideológica à poesia dobalina, não afeita a concepções e transcendências, mas a objetos tangíveis. H. Dobal é antes um cantador da América Ibérica. É autor do canto dos incivis que preferem falar sua própria língua a crer na superioridade dos artefatos de Próspero.
Hegel, ao tratar do caráter geral da poesia épica refere-se ao épico epigramático[10] que “diz simplesmente o que é a coisa” e onde “o homem não expressa ainda o seu pensamento pessoal, mas olha em torno de si, e acrescenta ao objeto uma breve explicação relativa à essência da coisa”. Este épico epigramático ao qual Hegel trata, constitui-se numa das formas imperfeitas do gênero, juntamente com os adágios e as gnomas em geral. Destarte, prossegue o filósofo:
“mas trata-se de gêneros híbridos, na medida em que, mantendo o tom geral de um determinado gênero, aplicam este tom a um assunto que não ingressa completamente neste mesmo gênero, do que resulta uma espécie de compromisso, um gênero imperfeito, que pode imitar também o gênero lírico. As locuções deste gênero (epigramas, gnomas, elegias), fragmentárias e isoladas, podem todavia chegar a ser reunidas, para formar um todo mais vasto, uma totalidade de caráter propriamente épico, logo que torne presente à consciência não um estado de alma ou uma ação dramática, mas uma esfera definida da vida real[...]”
A forma imperfeita do épico pode camuflar sua totalidade em fragmentos líricos de forma que, preservando um ou mais caractere épico, o gênero literário híbrido, ainda que indefinido, atue como uma função epopéica, seja em seu critério epigramático, seja em suas gnomas (não sendo este último o caso da poesia de Dobal). Isto se coaduna à tese fundamental aqui desenvolvida, afirmativa de que a poética de H. Dobal diz "o que é a coisa". Por outro lado, corroborando ainda a tese tangencial do caráter Calibã na poesia de Hindemburgo, Hegel afirma que “O verdadeiro poema épico pertence essencialmente a essa época intermediária em que um povo, saindo de sua ingenuidade e sentindo o espírito despertar, se põe a criar um mundo que lhe seja próprio e no qual se sente à vontade”. O canto dobalino afirma-se como epigrama de uma Kulchur e se contrapõe aos discursos que pretendem extorquir-lhe a beleza pelo uso equivocado dos conceitos. É um canto de cactos e talictres antilíricos, de terra árida. E isto é a essência de seu povo. Esperamos, ex nunc, que este ensaio incite os literatos a contribuírem na formação de uma fortuna crítica dobalina, que como outras questões intelectuais, espera por ação, nesta república onde tudo está por fazer.
notas
[1] Antonio Candido, em Formação da Literatura Brasileira.
[2] Jürgen Habermas, em Mudança Estrutural da Esfera Pública.
[3] Não é pretenso aqui analisarmos a poética dobalina como variável textual de suas supostas influências. Contudo, devemos ressaltar a nítida afinidade entre o caráter lírico-realista do segundo Yeats e o realismo fenomênico em Dobal. Refiro-me ao Yeats pós-Pound, desapegado da beleza mística outrora cortejada, enamorado a uma poética da raça, do belo estiolado : “To write for my own race/and for the reality” (escrever para minha própria raça e para a realidade). Não por acaso este Yeats epigrafou o Tempo Conseqüente.
[4] Haroldo de Campos refere-se assim aos critérios daqueles que pretendiam inserir forçosamente a poesia de João Cabral no rol da Geração-45. Ver o ensaio “O Geômetra engajado” incluso no livro Metalinguagem e outras Metas, editora Perspectiva.
[5] Staiger afirma a respeito da invalidação, pelo maniqueísmo, de uma narrativa em sua qualificação épica que “[...] a crítica de Xenófanes[...] debate-se com desvelo contra os ensinamentos divinos e a moral da poesia homérica. ‘Homero e Hesíodo atribuíram aos deuses tudo que entre os homens é blasfêmia e vergonha: roubos, adutérios, traições mútuas’. Aqui o bem e o mal já se desligaram das figuras e se tornaram valores abstratos.”(pág-113). O maniqueísmo da épica de Dobal está fundado em uma base cultural religiosa, ou seja na herança católico-judaica que divide o mundo entre anjos e demônios, e ainda em uma ausência de relativismo antropológico, o que permite julgar uma época a partir da outra ignorando as disparidades nas concepções de mundo entre passado e presente (refiro-me especificamente ao poema ‘El Matador’). Este, contudo, é um problema da aplicação histórico-antropológica do relativismo filosófico pirrônico, alhures abordado por Teresinha Queiroz. Este viés analítico não nos é pretenso aprofundar aqui.
[6] A conceituação do épico em Staiger constitui-se numa ideologia literária homóloga ao discurso ontológico fundamental de Heidegger, dái sua rigidez em admitir Homero, e somente Homero, como modelo puro da poesia épica.
[7] Esta abordagem relativa ao comunitarismo rousseauniano em Dobal, aparentemente destoante, nos fundamenta quanto ao argumento da filiação iberista do autor. Devemos esclarecer os desavidos que a epígrafe de Adolf Hitler, inclusa no poema ‘unreal city’ do livro A Provínicia Deserta não deve ser confundida com uma suposta simpatia ao nazi-fascismo. A frase “passou o dia da felicidade individual”, do próprio Hitler, apenas reafirma os valores de uma cultura Ibérica comunitarista que tem em comum com o fascismo um programa antiliberal e antiindividualista. E este é o único aspecto que Dobal pretendia enfatizar.
[8] Apud. Luiz Werneck Vianna. A Revolução Passiva — Iberismo e Americanismo no Brasil.
[9] Ver The Tempest, de Shakespeare.
[10] Ressaltemos a metodologia poundiana em Gerardo, que, execrado por conta da declarada filiação ao Integralismo, tem sua magnífica obra também pouco estudada. O próprio Ezra Pound disse “Em toda minha obra, o que tentei foi escrever a epopéia da América. Creio que não consegui. Quem conseguiu foi o poeta de O País dos Mourões.”
[11] O conceito Hegeliano de epigrama não se restringe ao sinônimo dicionarizado da palavra, aprofunda-se na averiguação da raiz etimológica da palavra: “epigrama, palavra da mesma família de epígrafe e epigrafia, a qual na verdadeira acepção quer dizer letra gravada sobre colunas, monumentos, ofertas votivas e outros objetos [...] o epigrama diz simplesmente o que é a coisa”. É precisamente nesta acepção que aplicamos o conceito ao épico dobalino. Cf. Hegel, Estética. Coleção Filosofia e Ensaios. Guimarães e Ca editores. Tradução Álvaro Ribeiro.
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Ranieri Ribas é poeta e sociólogo,
autor de Os Cactos de Lakatus (amálgama, 2003).
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